shinsekai

Sem título

Este lugar não é nada, disse ele certa vez enquanto sentavam-se para assistir ao nascer de um sol anêmico e avermelhado; é entre a vida e a morte, o acordar e o dormir, o mundo de cá e o mundo de lá. Aqui é o vazio e o limite do vazio, e enquanto eu não posso te ajudar a sair daqui, porque você está aqui por um motivo, eu posso aliviar as suas dores e os seus sofrimentos; vou cuidar a sua alma e do seu corpo, e peço apenas que confie em mim. Mesmo que não possa confiar, continuou ele, a capa escura que envolve seu corpo grande e alto batendo ao vento; peço que me dê uma chance, porque é isso que eu faço aqui: não é que eu guie vocês para o outro lado, porque isso é algo que só vocês conseguem fazer por si, mas eu, na medida do possível, quero criar um lugar agradável e adequado para que isso aconteça com maior facilidade, e você um dia irá embora daqui como todos foram, e seguirá seu caminho.

Aqui mal há dias e noites: dias e noites decidem quando surgem a seu bel-prazer, os ventos decidem quando surgem, as chuvas decidem quando surgem, os prédios decidem quando surgem, as montanhas decidem quando surgem. A única constância é que ele vai e volta a intervalos regulares do que este que chegou agora imagina que sejam de duas a três horas, e depois de dez a vinte ciclos, ele dorme por seis horas, mesmo que dormir não seja o verbo adequado: escorado em um canto, ele apaga, torna-se imóvel, instransponível e inalcançável, e o mundo parece um pouco mais escuro, um pouco mais caótico, um pouco mais solitário. Porque este que chegou agora não sabe como trabalhar pela sua própria salvação, pela sua própria passagem -- mal lembra de ter morrido, não concorda com ter morrido, não sabe se morreu, não acredita que morreu; estou mesmo morto se isso é tão real? --, então os dias ou os simulacros de dias se passam assim: o mundo agindo como quer, ele saindo a seus intervalos regulares, e este que chegou agora deitado na grama, observando o céu vazio.

Como posso sair daqui?, pergunta este que está estendendo sua visita ao que rejeita a alcunha de guia. O que rejeita a alcunha de guia ergueria as sobrancelhas se as tivesse, porque seu corpo, apesar de humano, não tem um fio de cabelo sequer, e este que está estendendo sua visita pergunta-se o motivo e quer perguntar-lhe o motivo, mas espera que ele responda a primeira pergunta. E o que rejeita a alcunha de guia parece finalmente hesitar: até há pouco distante, esta questão incita-lhe a olhar nos olhos do que está estendendo a visita e reconhecer nele alguém de uma maneira diferente dos outros, já que ninguém antes havia lhe perguntado como sair daqui. Chegavam, iluminavam-se, livravam-se de seus arrependimentos, superavam seus apegos, perdoavam os desafetos, encontravam a luz, reconheciam o criador, decidiam por passar adiante, decidiam descer aos infernos, decidiam voltar para assombrar a todos: e assim todos iam, um por um, e o que rejeita a alcunha de guia voltava a seu posto para esperar o próximo, até que chegou este que está se estendendo mais do que o normal. Bem, diz o que rejeita a alcunha de guia, eu não sei. Nasci aqui, então não sou sujeito às regras que regem esta passagem; não tenho afetos, não tenho sofrimentos, não tenho nada que possa mudar; aqui sou eterno, imutável e vazio, e por isso não posso te ajudar do jeito que você gostaria de ser ajudado. E uma pausa: o que rejeita a alcunha de guia percebe, e emenda: mas se isso lhe traz sofrimento, farei o possível para ajudá-lo. E o que estende sua visita diz: porque não lembro como morri, não sei como morri, não sei de mais nada; com um sorriso contra o pôr do sol vermelho, adiciona: será que eu também nasci aqui e me mandaram para cá para te fazer companhia?

Será que isso é a aposentadoria para você?, pergunta o que chegou há muito tempo enquanto lava a mortalha no rio, e a sujeira sai toda levada pela água, todo o peso e os arrependimentos e afetos e pecados que ficaram indo embora. O que ainda rejeita a alcunha de guia meneia a cabeça para o lado, e o que chegou há muito tempo explica: alguém lá em cima deve ter notado que você estava muito sozinho e me trouxe para cá, me mandou para cá, me criou aqui. Você não está cansado?, mas o que ainda rejeita a alcunha de guia nega: sou eterno, imutável e vazio; sem afetos, sem sofrimentos. Ao ouvir a mesma ladainha pela enésima vez, o que chegou há muito bate a mortalha algumas vezes e a entrega úmida ao que rejeita a alcunha de guia, dizendo-lhe: está calor hoje, vai fazer bem para você se refrescar; e o que rejeita a alcunha de guia a sente fresca nas mãos, e percebe a própria nudez.

Naquela noite ele dorme por doze horas, sai e volta em intervalos regulares de meia hora, e volta a dormir por doze horas após trinta ciclos, e acorda para a visão do que dominou o limite do vazio chegando do que agora é uma floresta com frutas e flores e mel, dizendo-lhe: aqui, você parecia meio doente então achei melhor ir procurar alguma coisa para você comer e te fazer alguma coisa para beber; que tal um chá?, pergunta, alcançando uma ânfora recostada no canto da sala ampla; vou lá no rio pegar água e rezar para que haja um fogão quando eu voltar aqui. E depois que seu companheiro sai, ele encara a cornucópia longamente, e decide tomar nas mãos uma das frutas, e decide levá-la à boca, e sente seu gosto.

Não acho que vou sair daqui tão cedo, diz seu companheiro, recostado em seu ombro; os dois observam a chuva cair de uma janela ampla que surgiu na parede ocidental da sala. Isso me preocupa um pouco, sabe, porque acho que já tomei seu tempo demais; como estão os outros? Como estarão os outros? Mais gente além de mim precisa passar por aqui, então acho que vou desistir e, sei lá, talvez se eu desejar do fundo do coração eu saia daqui, mas admito que não consigo achar força de vontade para sair porque, como eu disse, não tenho nada além daqui. Ainda assim, a ideia de que tem pobres almas encalhadas sem conseguir passar por esteve vazio me dá um aperto no peito; preciso fazer alguma coisa por elas, também. E o psicopompo diz: não se preocupe, não há mais ninguém para vir. Além de mim e desde mundo há infinitos eus e infinitos mundos, e todos nós somos iguais: eternos, imutáveis e vazios. E, ao acabar de falar isto, vem a realização em meio à tempestade.

Como um trovão, como a luz, a febre chega e derruba aquele corpo forte, perfeito, imutável, eterno: está mudando. Como uma borboleta, como uma mariposa, como uma libélula, ele muda e se reconfigura, e aquilo leva embora tudo que ele tinha: nomeadamente, a eternidade. E enquanto definha, amaldiçoa: o que foi que você fez comigo? Esse sofrimento todo é a humanidade? Não sabe se perdeu a eternidade antes ou depois do fim do vazio, ou se tudo isso aconteceu quando percebeu, com certo pesar, naquele dia de tempestade, que não gostaria que seu inquilino fosse embora: que era bom que ele não soubesse o que fazer, não tivesse chance de partir, ficasse preso para sempre; este ponto em seu coração dói e o envergonha, e novamente amaldiçoa o fim de sua eternidade e do seu vazio, e deseja poder afogar-se no rio e fugir, e imagina se agora poderá o fazê-lo porque não é mais eterno-

O toque rude, as lágrimas quentes, o fogo nos pulmões, aquela voz desesperada; agora ele sente ainda mais vergonha por ter tentado fazer o que fez; enrolado em sua mortalha suja, ele se lamenta e descobre que suas próprias lágrimas também são quentes.