shinsekai

O Historiurgo

Meu mestre é um patife.

É uma pena que nunca conseguirei dizer isto na cara dele, já que há muito ele se foi. Não disse adeus, não deixou recado, não avisou: desapareceu no ar, como se nunca tivesse existido, como se sua presença nesta terra fosse estranha, impossível. Foi-se não como das outras vezes, quando, com grande pompa, declarava que havia chegado o verão ou o inverno e que ficaria longe por um tempo — às vezes semanas, às vezes um mês inteiro —, então partia sem olhar para trás.



Meu mestre: velhas roupas verdes, chapéu pontudo e desgastado de abas largas, olhar de eterno cansaço, sorriso compreensivo no rosto, alguns livros e apreço pelo silêncio. Não foi ele que me escolheu: eu o escolhi ao vê-lo em uma de suas andanças. Como todos, fui vítima daquele glamour quieto, o mistério e a solidão que o envolviam. Sobre ele só ouvira histórias e causos, fofocas do povo que o havia visto uma, duas vezes, típicas meias-verdades esdrúxulas: aquele homem um dia matou um dragão, aquele homem um dia salvou uma princesa, aquele homem consegue mudar os cursos e os rios da História, aquele homem tem muita sabedoria, aquele homem é o mágico mais poderoso que existe. Aquele homem é uma força da natureza, um espírito, um furacão. Aquele homem tem em si todo o chão que se estende aos quatro cantos do mundo; ele é o vento que surge e some, ele é o fogo que destrói e renova, é a água que corre.

Instigado por estes rumores, segui-o por três dias antes que ele me notasse. Em vez de um lorde arcano terrível e cruel, deparei-me com um homem quieto, soturno, muito calmo e paciente, que me disse, enquanto eu me escondia entre as árvores daquela terrível floresta:

— Está frio. Venha aqui, minha fogueira está acesa e tenho comida.

O que ele não esperava era que eu fosse segui-lo para sempre. Ou, ao menos, era esta a minha intenção: queria descobri-lo, decifrá-lo e entendê-lo, separar o homem da lenda, do rumor, da fofoca, do causo, aprender tudo que ele pudesse me ensinar, tornar-me ele. Logo descobri que isto não estava em seus planos.

Mas estaria.

— Aprendizes? Não os tomo. Me desculpe — ele me disse naquele dia em que saímos da floresta e demos de cara com um campo florido, estendendo-se ao infinito, tingido de laranja, vermelho e roxo do pôr do sol. Ele tinha em seu rosto um sorriso despreocupado, até meio envergonhado, e toda hora tirava os cabelos pretos dos olhos, da pele morena. — Qual é o ofício que você quer aprender? Certamente há alguém neste mundo disposto a te ensinar.

— O teu — eu respondi. — Não importa o que seja. O que você faz?

O vento bateu forte e quase derrubou seu velho chapéu. Ele o tirou e produziu um maço de cigarros de dentro da bolsa de couro. Acendendo um com um fósforo, disse:

— Eu trabalho com a História. — Silêncio. O vento bateu mais forte e o cigarro apagou. Meu mestre enfiou o chapéu na cabeça, só os olhos para fora. Foi aí que notei que este homem era mais baixo que eu, e ele prosseguiu: — É um trabalho de cão. Não o recomendaria a ninguém.

— Como assim, trabalho com a História? — perguntei. A noite caía e o gelo vinha junto, então me lembro bem de ter que me enrolar na minha capa e puxar meu capuz. — O que isso significa? O que você faz?

— Já expliquei — disse ele, como se surpreso. — Não prestou atenção?

Com a impressão de que ele pregava peças em mim, apertei os lábios e me calei. O jovem moço à minha frente não poderia ser este mago de que falavam; soava mais como um vagabundo andarilho, um canalha. Sua risada contida ressoou no espaço e ele se sentou, tirou da bolsa um grande e pesado grimório e o abriu: estava coberto por rabiscos complicados em sua totalidade, anotado em todas as partes, páginas e cantos. Meu mestre folheou as páginas até o fim — e vi que este tinha páginas brancas e que elas se escreviam, enchendo-se de nomes e números e palavras e rasuras e tachados — e voltou, parou na metade, sacou um lápis e escreveu algo que não pude decifrar.

— Vamos dormir agora — disse ele, fechando o grimório. — Está tarde e a noite será longa. Estamos quase no inverno… — Olhou para o céu claro, salpicado de estrelas. Após alguns momentos de silêncio, levantou-se e pôs-se a armar a tenda, os materiais tirados também da mochila.

No dia seguinte, percebi que eu entendia.

Meu mestre mexe na História. Ele é dono do passado, do presente e do futuro. Ele reescreveu a minha História e adicionou que eu entenderia seu ofício sem maiores dificuldades. Acrescentou uma frase: “e ele compreendeu a natureza daquele trabalho.”

E pronto, eu compreendia a historiurgia.



Meu mestre não tinha passado, presente ou futuro. Descobri tal fato ao ler seu grimório surrupiado. O livro parecia pesar uma tonelada e tinha um milhão de páginas que se multiplicavam, escrevendo e crescendo a todo momento, toda hora, descrevendo a História de tudo — exceto a dele. As passagens dos feitos atribuídos a meu mestre eram atribuídas a ninguém, a um anônimo, a uma voz, a uma visão, ao nada: e a princesa foi ajudada por alguém; e o dragão sofreu um aneurisma e morreu; a historiurgia foi-lhe explicada e ele compreendeu a natureza daquele trabalho.

Ainda assim, ele trabalhava sua História todos os dias: após relutantemente aceitar-me como seu aprendiz, passou a instruir-me no ofício da historiurgia com afinco, com aquele sorriso contente no rosto, como se sentisse imenso prazer na arte de ensinar. Disse-me um dia, depois de presentear-me com um grimório historiúrgico em branco, para que eu parasse de escrever no seu:

— Nas minhas terras, também sou um estudante. Aprendo a ensinar. Está dando certo? Está aprendendo?

Eu respondi, com outro sorriso quente, radiante:

— Acho que sim. Ontem, mudei a história daquela mãe hiren roxa e dei-lhe o sétimo filho que tanto desejava.

E meu mestre murmurou, olhando a casa colorida pelo arco da porta da sua própria:

— Só tenha cuidado. Veja: sua casa agora é maior que antes e há menos árvores no bosque. O que mais pode ter mudado? Com a adição ou subtração de uma vida, uma pedra, uma borboleta sequer, o presente e o futuro se modificam. O futuro não existe… é o mais volátil dos tempos. O que mais mudará a partir de agora, com este novo hiren roxo?

Era um ofício complicado, difícil, mas lentamente me aperfeiçoava nele e fazia coisas maravilhosas: mais primaveras, invernos mais curtos, mais frutas. Mais vidas.

Éramos historiurgos e taumaturgos, tecendo milagres.



Meu mestre saía ocasionalmente. Duas vezes por ano, fazia pausas e dizia que precisava voltar para casa; preparava uma grande festa para os vizinhos e passava ela toda em um canto, fumando seu cachimbo, cigarro, charuto, observando as criaturinhas dançando e se divertindo, os vizinhos fofocando, homens e mulheres bebendo até cair. Minanmars vermelhos e helegues magrelos riam; a mãe hiren tinha dificuldades em seguir suas sete crianças pela festa. Depois disso, na calada da noite, segurava minhas mãos e dizia-me com um sorriso:

— Até o próximo período. — E, após um momento, adicionava: — Não me siga.

Um dia, perguntei-lhe, enquanto o ajudava a guardar as coisas na mochila:

— Por quê? Por que não posso te seguir? O que há na sua terra que é tão perigoso assim, tão proibido?

E ele me respondeu:

— É uma nação diferente demais. Outras pessoas, outras Histórias. Se me seguir, talvez não consiga voltar. Será só por duas semanas, desta vez. O calendário se ajeitou e o inverno bate à porta… voltarei antes da primeira neve.

Um dia, eu o segui. Foi quando o verão se aproximava — nestas épocas, ele ficava de dois a três meses fora —, e dei-lhe dois dias de vantagem antes de segui-lo. Passava por onde ele passara e perguntava a todos, “ei, aquele mágico estranho, aquele vagabundo de verde passou por aqui?”, e me respondiam, “sim, ele foi para o oeste, para as florestas sombrias, foi para o lago de cristal, foi para a montanha ametista, subiu a cordilheira diamantina”. Assim, atravessei florestas, lagos e montanhas, subi cordilheiras e desci vales, conheci criaturas novas e fascinantes, dormi sob chuvas de meteoros e enfrentei bandidos. Dormi nos lares de minanmars, de cacisas falastrãs e de varços nodosos que se movimentavam com a lentidão das árvores que eram. Rulhos fofos e das cores dos cafés com leite me abrigaram em uma casa que mais parecia uma torre. E, depois de muito tempo andando, seguindo seus rastros, eu encontrei o Limite das Terras.

O Limite das Terras é uma faixa cinza e quente, dura, semelhante a pedra. Além dele não há mais grama, não há mais verde, não há cacisas, minanmars, historiurgos, princesas ou dragões. Além dele há construções como torres cruéis, dedos que perfuram o céu, brilhantes em todas as cores do arco-íris contra um fundo acinzentado, desbotado, cheio de vidro. Há coisas estranhas que passam correndo mais rápido que qualquer hiren assustado, fazendo um barulho terrível de alto. Passam animais estranhos, peludos, de quatro patas, guiados por gente como eu, você ou meu mestre.

Em primeiro momento, gritei de pavor. Caí sentado e gritei; berrei como se estivesse para morrer, porque aquela visão me apavorava. A terra de meu mestre era terrível demais, impossível, assustadora, errada. E, ao ver que ninguém ligava para o meu desespero — ninguém parecia ao menos notar que eu existia —, enchi-me de raiva, levantei-me, enxuguei as lágrimas e tentei atravessar o Limite para resgatar meu mestre daquela terrível nação.

Mas não pude ultrapassar a faixa cinza. Era como uma barreira invisível, irresistível, que me mantinha dentro da minha terra, do meu lugar.

Aquela, realmente, era uma terra estranha. Com outras pessoas, outras Histórias.

Nenhuma delas era a minha.



Meu mestre se foi para nunca mais voltar. Foi-se como se seu tempo aqui tivesse acabado. Um dia, enquanto eu voltava dos meus estudos e da ajuda diária que fazia à mãe hiren e seus filhos, vi que ele não estava mais lá. Não havia mais grimório, roupas verdes, chapéu pontudo. Não havia mais nada. Nem um fio de cabelo, nem cartas, nem lápis.

Corri até o Limite das Terras, bati de cara naquela barreira e caí para trás. Quebrei o nariz naquela palhaçada e debulhei-me em lágrimas, a alma pesada, traída. Sabia que ele não voltaria nunca mais e que tinha me deixado, minha educação inacabada, meu coração partido. Foi-se porque seu tempo aqui acabara, porque não tinha mais nada para aprender aqui. Porque tinha dominado a arte do passado.

E passei três dias escrevendo no meu próprio grimório, canalizando minhas energias e conhecimentos historiúrgicos nele, tentando fazer nascer a magia:

E o mestre voltou para o Lado de Cá.

E o mestre surgiu e disse ao aprendiz que era só brincadeira.

E o mestre retornou e disse que nunca mais sumiria novamente.

E o mestre descobriu que seu lar era no Lado de Cá.

Mas não tenho poder sobre o passado, presente e futuro de quem não tem passado, presente ou futuro. Minha magia não é tão forte quanto achava.

Ele não voltou. Nem naquela época e nem agora.

Ainda o espero.



Percebo agora que meu mestre não pertencia não apenas a esta terra, mas a este mundo. Tudo nele era ímpar ou alienígena: seu jeito de falar, de se vestir, de agir; ele tinha em si uma estranheza de quem é etéreo, de quem só está lá para um passeio, uma viagem, de quem não combina com o ambiente. Sutilmente tinha em si uma parte da irrealidade, do inquietante. Suas idas e vindas, o lugar misterioso para onde ia e de onde vinha: ele pertencia ao Lado de Lá, e eu pertenço ao Lado de Cá. O Lado de Lá, cinzento, esquisito, impossível, impensável. O Lado de Cá, verde, familiar, confortável, bucólico.

Imagino se ele tem um passado, presente e um futuro no Lado de Lá. Imagino se conseguirei reencontrá-lo. Imagino se um dia poderei me tornar um grande historiurgo como ele. Meu grimório passou a ser preenchido à mão com todas as informações que podia ver, receber, entender, mas logo notei que não era assim que a historiurgia funcionava. Então, pus-me a aprender pelos livros, pelos tomos; dediquei-me intensamente como ele se dedicava e viajei por todos os lugares; tive em mim todo o chão do mundo, o fogo, a água e o vento. E, em um dia chuvoso, de trovão e enchente, meu grimório pôs-se a preencher-se sozinho. Primeiro aos poucos, como se tímido, confuso, hesitante; depois ganhando velocidade, descrevendo para mim as maravilhas que ocorriam nesta terra em que eu estava: contou-me que a dona que me dera abrigo traía o marido, que as cacisas do terceiro andar fofocavam sobre mim, que o filho mais velho da mãe hiren casar-se-ia.

Mas não era o suficiente. Onde estão os sentimentos?, eu me perguntava, consternado. Está limpo demais. Por que ele não se rasura, censura e reescreve?

Minha historiurgia é fraca: conta, grava e altera fatos, mas não interpretações. Meu mestre me disse, em um dia de neve, que um pensador de sua terra falou o seguinte: “não existem fatos, apenas interpretações”. O nome do pensador eu já esqueci — acho que começava com F, Fredo, Fradarik; seu sobrenome tinha só duas sílabas pesadas, cheias de cuspes — e agora sei que meu mestre definitivamente não era deste mundo, porque pensador nenhum aqui já disse isto.

Espere.

Eu tenho meu grimório que contabiliza fatos. Posso checá-lo agora. Pego-o, pesado como uma bigorna, e o abro no meio, mais para o começo: ele inicia-se com a minha história — eu, o historiurgo que o criou — e a segue, segue-me por onde vou. Então, não tardo a encontrar a passagem:

“E houve alguém que falou: ‘Friederich Nietzsche um dia disse que não existem fatos, apenas interpretações. Ah- Nietzsche é um pensador da minha terra. Um filósofo. Morreu há muito, mas continua vivo nas ideias. De qualquer jeito, não sei se concordo. Ele falava contra os positivistas, totalmente factuais, mas não existe História sem os dois. É claro que existem interpretações fantasmas de fatos que nunca existiram; tulpas e construtos e memes que se repetem sem uma origem certa, sem a firmeza sólida de algo que aconteceu. Mas existe também a fundação. Não se pode ignorá-la, mas ela não é a única coisa que existe…’, e o aprendiz ficou confuso, porque nunca ouvira falar neste pensador.”

Meus olhos marejados…

Não tenho poder sobre o passado, presente e futuro dele, mas tenho sobre os meus.

Esta é a minha magia.

Vou buscá-lo em seu mundo. Farei milagres.