shinsekai

O conto de um verão sem sol

Notei que amava Renato Schneider no começo daquele verão sem sol.

A figura dele sentada na beirada da cama, recostada na cabeceira, um cigarro aceso entre seus dedos, falando sem parar sobre a natureza da alma, da metafísica do ser, da teologia do gnosticismo e do mundo que virá, do fim de tudo e recomeço das eras; ele contra a luz do dia que raiava cinza e prata, as nuvens ralas espalhando-se como uma cortina sobre o mundo. O cheiro da maresia presente em suas roupas, misturado com o do tabaco, e o sal e a umidade — isso era tudo que eu conhecia e que eu gostaria de conhecer naquela manhã que despertava, quando percebi que amava Renato Schneider.

Nós dois sozinhos no mundo todo — naqueles momentos, todo o universo era só eu, ele, minha quitinete e o céu, as nuvens e a maresia, as cores cinzas e o cheiro de tabaco e café que ele também carregava consigo; naqueles momentos eu me senti livre pela primeira vez, como se tivesse me renovado, como se o vento trouxesse consigo um tipo de limpeza e iluminação; e passei as mãos no rosto e vi tudo como se tudo fosse novo.

Naqueles momentos- naqueles momentos eu senti que o mundo era só nós dois e que nada mais importava, como se fosse um diorama, uma fotografia tirada de longe; eu e ele, minúsculos, gelados de maresia, e quis beijá-lo; quis agarrar seus ombros e beijá-lo e pedir em voz anêmica “fica comigo hoje, vamos tentar dormir agora”, mas isso nunca veio — veio ele apagando o cigarro numa cinzeira sobre o criado-mudo, seu olhar azul no meu e sua voz que quebrou o diorama:

— E então? Concorda comigo?

Mas não havia passado, não havia palavras antes disso — havia só eu, ele e o calor no meu peito, que subia e espalhava-se pelo meu corpo, pelo meu rosto, e me obrigava a desviar o olhar. Assim, perdido no tempo e por pouco não no espaço, tentei recuperar as memórias vazias dos últimos minutos, mas só havia paixão, paixão, amor, você é tão bonito, como você pode ser tão bonito?, como se algo tivesse me atingido e mudado minha própria essência, porque no começo da noite eu era um historiador e um livreiro e um bruxo, e no fim dela, com a manhã sem sol a derrotando, eu era só um rapaz apaixonado.

— Eu te amo tanto — foi o que eu consegui dizer, ou acho que disse, porque as lágrimas encheram meus olhos, o nariz entupiu e a voz falhou, e Renato Schneider pensou que eu tinha tido uma grande revelação e atingido o Nirvana, entendido tudo da existência, e achou bonito que eu desatei a chorar.



Ele foi embora não muito tempo depois, deixando-me ciente de que já passavam das seis da manhã e que meu turno começaria em menos de duas horas, que era melhor eu decidir entre tirar um breve cochilo e virar energético para aguentar o dia. Com a aparência de quem já estava acostumado a fazer esse tipo de coisa, de virar noites e noites — talvez não discutindo a metafísica da alma —, ele pegou seu paletó e se foi sem ao menos tomar um café, sorrindo docemente para mim e para meus olhos avermelhados, para meu jeito sem graça e para as lágrimas secas da epifania e da verdade.

— Eu te amo tanto — foi o que eu não consegui dizer de novo, naquele momento, enquanto ele partia e fechava a porta delicadamente atrás de si —, eu te amo tanto — foi o que não consegui dizer enquanto olhava para ele da minúscula sacada da quitinete, sobre a livraria e diante da praia —, eu te amo tanto — foi o que morreu na minha garganta quando ele acenou de longe e entrou no carro estacionado na rua à frente da praça, salpicado de orvalho e de chuvisco, e partiu sem muita pressa, como se passeando pela orla.

Deitado na cama, exausto da noite, das ideias que fervilhavam na minha cabeça e no meu sangue, do mundo novo que se abrira ao meu redor com aquela lufada de ar marinho, tateei o celular e deixei a seguinte mensagem para meu chefe: estou doente, preciso faltar hoje, me perdoe.



E meu chefe bateu à porta dez minutos depois, chamando-me pelo nome, Nathan? Natanael, tudo bem?, mas eu já estava entre o sono e a realidade, o corpo mole, sem peso, flutuando, realmente úmido da chuva que respingava pela janela, pela sacada, pela porta de vidro de correr. Como se as forças tivessem sido drenadas de mim na ausência de Renato Schneider, desabei e perdi os movimentos, a voz, a vontade; todo meu desejo voltava-se apenas e tão somente para o momento em que ele voltaria, e, em meio à febre em que imaginava estar, criava cenários na cabeça: Renato, eu te amo, Renato, por favor, preciso te falar que eu gosto muito de você, gosto gosto, sabe?, Renato, não aguento mais viver sem você, ah, estou sendo muito dramático?, mas já nos conhecemos há tanto tempo, deixe-me só amar você à distância, assim; não preciso nem tocar, só preciso de você comigo.

Assim, meu chefe entrou sem mais nem menos, passou a chave na porta e entrou, e disse ao me ver:

— Caramba, Natanael, que história é essa de dormir com isso aberto? Ficou maluco? — E entrou no apartamento tropeçando em tudo, em roupas jogadas, chinelos e sapatos largados, papéis e livros e contas a serem pagas, até alcançar a porta de correr e a fechar, e o vidro ficou salpicado de água. — É febre mesmo ou você está de sacanagem comigo? — perguntou ele, virando-se dramaticamente para colocar a mão na minha testa; ah, meu chefe é uma figura, um homem de sei lá quantos anos com a exata aparência de um de trinta, e jeitos tão idosos quanto sua idade real. — Não está nem tão quente assim. Vamos lá, você precisa me ajudar ao menos até o Camilo chegar, tudo bem? Você precisa continuar o treinamento dele. Não posso treiná-lo sozinho.

— Até uma da tarde?

— É. Pode ser. Você trabalha logo embaixo da sua casa, qualquer coisa eu te libero. Te espero lá. Já vou abrindo a livraria — disse ele, com aquela voz grossa, de veludo, tão destoante para ele. — Oito da manhã, Natanael. Te espero lá.

— Tá.

— Melhoras.

Mas eu não levantei nem acordei quando ele bateu de novo, entrou e desistiu de mim, me cobriu e me deixou dormindo onde eu estava, a febrícula sempre presente, a dor também, em segundo plano, discreta, no fundo do peito...

E só acordei quando passavam das duas da tarde, com Renato me ligando...

E ele me perguntou se eu queria sair com ele depois do expediente, jantar numa das barraquinhas à beira-mar, porque nossa conversa não tinha terminado, e eu parecia ter tido ideias tão boas que ele precisava saber delas, a julgar pelas minhas lágrimas e descontrole...



Quando desci para me encontrar com ele, percebi que estava em cacos. O banho, tomado a contragosto, não havia ajudado muito; minhas roupas estavam amarrotadas e, como sempre, grandes demais no corpo. Ainda tinha no rosto olheiras e olhos avermelhados, além da febrícula que ia e voltava, e a sensação de que havia gasto meu dia todo por causa daquelas palavras que, ditas, eram tão efêmeras — te amo tanto, esta frase levada pela maresia e afogada por ela —, mas que insistiam em mastigar e arrancar minha carne. Assim, arrastando-me escadas abaixo — só depois percebi que tinha deixado a porta de casa aberta —, os ombros caídos e a coluna envergada, sem me importar se passava despercebido ou não pelos olhares do meu chefe e novo colega de trabalho, entreguei-me à orla da praia e adentrei naquele mundo de céu de brilho anêmico, de sol ainda vivo por trás do tapete de nuvens.

E ele lá, aguardando-me diante do carro, me fez perceber o quão destruído eu parecia: descabelado, amarrotado, maltratado e adoentado, e ele asseado, bem passado, bonito, aparentando saúde — mesmo que eu soubesse que o cigarro e a bebida lhe faziam mal —, pronto para uma happy hour no meio da semana com seu melhor amigo — melhor amigo? Era disso que eu podia me chamar? Eu e Renato Schneider havíamos nos conhecido no trabalho, quando eu ainda trabalhava na mesma editora que ele, antes de eu desistir daquilo e jogar tudo para o alto, porque passava as noites em claro, o coração palpitando e o peito doendo, e já tinha ido ao clínico geral duas vezes por medo de estar tendo um piripaque — era só estresse e gastrite, mas parecia um piripaque em mim, ou algo pior, como se aquela rotina fosse um bisturi a entrar lentamente pelo meu esôfago, e cada olhar atravessado de um chefe ou colega o fizesse balançar e tocar tão, tão suavemente as paredes mucosas de mim, até que começou a surgir um buraco castigado eternamente pelo ácido do meu estômago...

E saí daquele emprego, mudei de endereço e fui morar de favor — mais ou menos — por um salário mínimo — mais ou menos — sobre a Livraria & Antiquaria Ferrez, onde você pode encontrar de alguns facsímiles velhos, primeiras edições e exemplares autografados por aqueles que há muito fugiram do mundo até o mais novo romance erótico do mercado, aquele de capa azul, preta, rosa, cujo título remete a algum canalha ou CEO. É assim a vida na Livraria & Antiquaria Ferrez: vêm a nós historiadores — gente da minha laia — e pesquisadores, sociólogos, antropólogos, ricaços e colecionadores, e também estudantes, donas de casa com dois, três, sete filhos; jogadores de RPG e fãs de young adult, reacionários e comunistas, e não negamos a venda a ninguém. É assim a vida na Livraria & Antiquaria Ferrez: o aluguel é abatido do salário no dia seguinte, e sobra para mim pouco menos de quatrocentos reais, coisa pela qual agradeço, porque achar uma quitinete por esse preço é nada menos que um milagre.

Foi assim que Renato chamou o negócio entre mim e Álvaro: um milagre. Acho que é parte de um: o milagre real é eu ainda estar vivo, e agora eu quero desesperadamente continuar vivo. Essa realização, como a do dia anterior, me fez acordar e endireitar a coluna, encará-lo de frente e reparar em como o mundo estava bonito naquele crepúsculo: as ondas ao longe, o som delas em meus ouvidos, o cheiro salgado do sal e das comidas dos quiosques, a fumaça deles que subia, as lâmpadas amareladas, as pessoas que, livres, caminhavam e seguiam suas vidas. Não era só mais eu ou ele: éramos nós e o mundo todo, e quis desesperadamente ficar nele. Porque não podia sair dele até que falasse



— Eu te amo tanto, Renato — E mordi os lábios, os olhos apertados e os dedos firmemente entrelaçados, eu olhando para a mesa onde o garçom havia acabado de deixar os quitutes: casquinha de siri e bolinho de bacalhau. — Desculpe- eu acho que-

— O que você disse? — ele me perguntou, os olhos azuis arregalados por trás dos óculos retangulares, o corpo todo tenso,

— Eu disse que te amo tanto — respondi, escondendo o rosto em seguida, os cotovelos sobre a mesa e a respiração pesada, como se tivesse outra torrente de choro a qualquer momento: não veio. — Por favor, me dá uma chance, Renato- — E me impedi de continuar, porque pensei em tudo que podia estar fazendo contra ele, em como podia estar o assustando, abusando da sua boa vontade, me colocando como um pavoroso nice guy, e comecei a pisar em cascas de ovos, em cacos de vidro, não, não posso pensar assim, é ele quem está sofrendo, não eu — Esqueça- deixa isso para lá- eu acho que estou bêbado.

E veio a voz dele:

— Eu prefiro que você não esteja.

E, após aqueles letárgicos momentos, quando o garçom passou e nos entregou também a jarra de suco de laranja, quando ele pôs a mão sobre a minha — tão bonita, a mão dele; pálida, fina, com dedos de pianista, sobre a minha, morena escura, de dedos tortos e aracnídeos — o mundo se iluminou para mim.

— Essa foi a epifania de ontem — falei, segurando sua mão com firmeza. — Espero que não fique decepcionado comigo- não achei nenhuma resolução para nenhum paradoxo, nem um novo entendimento da teologia, nem uma nova hipótese da natureza da alma, nem uma solução para o problema do mal, nem uma nova historiografia-



Notei que amava Renato Schneider no começo daquele verão sem sol...