shinsekai

Estige

Nesta noite, quando Karon chega dando falta de um olho, Man-o’-War retira um dos seus próprios e o implanta no ciborgue, que, dopado de tantas drogas que mal sente dor, se mantém lúcido e alerta, e pergunta:

— Você tem certeza? A gente não tem dinheiro para comprar outro para você.

— Um dia vamos ter, mas você não pode ficar sem enxergar — responde o robô, puxando fios, fazendo conexões, executando programas. — Afinal, é você que é o ganha-pão dessa casa.

— Vou arranjar outro pra você o mais rápido possível.

— Não se preocupe. Eu fico aqui o dia todo, não preciso enxergar bem. E você? Como está se sentindo?

Karon fica quieto, o olho que lhe sobra mirando bem aberto o teto branco do apartamento, e parece esquecer-se de piscar por longos momentos. Man-o’-War limpa o sangue, aplica antibióticos, faz pontos e concorda consigo mesmo: foi um trabalho bem-feito, este olho mecânico de esclerótica preta e íris cinzenta ao lado de um ainda humano, com capilares e células, de lente ciano que permite ao ciborgue ver mais longe, enxergar no escuro, visão termal. E, enquanto Karon não volta a si, passa delicadamente a mão por seu rosto, afasta os cabelos grandes pintados de azul-piscina e lhe dá um beijo na testa — é aí que o ciborgue espasma, os olhos arregalados; vira-se na cama, apoia-se nos cotovelos e se senta, dizendo:

— Obrigado. Te devo essa.

— Não se preocupe — repete o robô.

Vão os coldres de couro branco do peito, a camiseta de gola rolê preta, as botas de trekking e as calças cinza: Karon, somente de roupas de baixo, o corpo modificado amostra, os sulcos sob a pele — o pé esquerdo perdido numa briga de gangue, três dedos da mão esquerda cortados fora em uma missão que dera errado, o braço direito arrancado pelo filho do chefe, ambas rótulas cirurgicamente retiradas como punição, e, agora, o olho direito perdido de uma maneira que Man-o’-War não faz ideia — mas desconfia, pelos ferimentos em torno da órbita, que teve a ver com alguém esfregando este rosto bonito, de pele quase azul de tão branca e tantas substâncias dúbias sob ela, em um asfalto áspero, cruel, mal-trabalhado.

Karon aumenta a potência do ar-condicionado e se senta novamente na cama — onde tem mais um espasmo, mais um par de convulsões — e se deita como se nada tivesse acontecido, o controle da televisão já na apontado para a tela: está para começar mais um filme de ação da madrugada. Os dois sentados na cama, os olhos passando da TV para a enorme janela do apartamento, da TV para os helicópteros que de vez em quando sobrevoam a cidade; os dois neste apartamento branco, minimalista, silencioso, tomado pelo ruído do ar-condicionado e da televisão quase no mudo, e, quando Man-o’-War percebe, Karon já dormiu: é sua deixa para recarregar e dormir, também.



Nesta noite, Karon chega dando falta da mão esquerda inteira: entra quase esmurrando a porta, apertando o toco ensanguentado do pulso, os olhos arregalados e o cenho franzido, os dentes amostra, respirando pela boca como um animal selvagem em apuros, e Man-o’-War se pergunta — todas as misturas de menfetaminas e anestésicos e analgésicos e Deus sabe lá o que ele toma todos os dias não fizeram efeito? O sangue vermelho-escuro de Karon mancha e macula o apartamento impecavelmente branco, e Man-o’-War é rápido em ajudá-lo a tirar as roupas, a fazer um torniquete e, quando seus olhos se iluminam em ligação, o ciborgue o interrompe:

— Vai ligar para quem? Para o quê? Me dá um anestésico e me ajuda a cauterizar isso.

E o robô se recorda: sim, impossível uma ambulância do governo ou de qualquer plano de saúde vir resgatá-lo, seria uma linha direta de casa ao hospital e à cadeia e nunca mais se veriam porque Karon morreria em dois dias sem todos os cuidados que inspira — Man-o’-War conhece seu eleitorado; enquanto estivesse vomitando e convulsionando de abstinência, certamente arranjaria forças para arranjar algum problema com algum detento, e talvez com uma facção inteira, e seria achado morto antes do fim de semana, perfurado por facas artesanais, violentado por três homens diferentes, enforcado com a própria camiseta, sem as unhas de todos os dedos que ainda lhe são biológicos e talvez sem os dentes, também, e certamente sem nenhuma parte mecânica, que já teriam sido tiradas para serem revendidas dentro do presídio. E sabe também que ele provavelmente não sentiria dor neste processo inteiro, ou a dor o levaria a um estado ainda mais estranho de abstinência e vício, uma situação de consciência alterada que o faria morrer sem ter percebido que morreu.

— Não posso cauterizar isso aí — diz Man-o’-War enquanto abre o frigobar e tira dele uma ampola de anestésico —, eu vou é te dar uma mão nova. Senão você não pode trabalhar e é você o ganha-pão daqui…

O sol nasce e a cidade acorda enquanto um robô de cabelos brancos termina a operação de ceder a própria mão esquerda a um ciborgue de cabelos azuis — lá embaixo as pessoas começam seus dias, tomam ônibus e metrôs e maglevs, e a janela do apartamento localizado sobre um shopping escurece, deixando-os sob a luz artificial do apartamento branco. Karon já está profundamente adormecido e Man-o’-War se deita ao seu lado, prestando atenção no subir e descer de seu peito.



Nesta noite, Karon chega dando falta das duas pernas dos joelhos para baixo — utilizando muletas, ele abre a porta do apartamento com o cartão de identificação e saltita para dentro, e Man-o’-War percebe, em seu rosto, que ele injetou algum coquetel que o deixou com este jeito lerdo, aéreo, longe da realidade: seus olhos miram o nada e os lábios entreabertos deixam até escorrer uma ou duas gotas de saliva. Apesar de tudo, o que sobrou das pernas já passou por torniquete e primeiros-socorros precários, então o apartamento não ficará manchado como antes.

Karon consegue dar mais três passos antes de perder o controle das muletas e ir com tudo no chão, sem emitir barulho algum, e cabe a Man-o’-War trancar a porta, tomá-lo nos braços — todos aqueles dois metros e cento e tantos quilos de homem, três quartos disso certamente mecânicos — e levá-lo à cama, onde tira suas calças e verifica o estrago feito: as pernas devem ter sido esmagadas por algo e foram cortadas fora depois. Enquanto tira o pulso do ciborgue, aplica anestésicos, limpa as feridas e prepara-se para tirar suas próprias pernas fora, pensa: não há trabalho que justifique este sofrimento. Karon convulsiona violentamente quando conecta as bases mecânicas, os olhos subindo ao crânio, e imagina se agora não morreu — não morreu; seu coração ainda bate forte e seu diafragma ainda funciona, mas ele mordeu a língua e os lençóis brancos estão vermelhos, e pela primeira vez o vê chorar, mas não sabe se é um choro de sofrimento ou se é apenas fisiológico que as glândulas lacrimais foram pressionadas. Quando as pernas estão prontas, Karon se vira como se num instinto e vomita no chão, treme-se todo da cabeça aos pés e pede, quando Man-o’-War o leva à banheira e o deixa, pernas para cima, sob a água gelada do chuveiro:

— Preciso do coquetel. Me arranja o coquetel, por favor. E Man-o’-War, vendo-o sujo, miserável, pálido, quase morto, se vê acatando ao pedido e injetando as doses uma por uma, e só assim ele consegue dormir.



Nesta noite, Karon chega sobre o ombro de outro ciborgue: é um rapaz de cabelos castanhos-claros presos para trás com um arco, cacheados e parecendo uma coroa de sol, olhos azuis e cara de poucos amigos: a mesma cara de Man-o’-War.

— Esse drogado vai morrer se você continuar deixando ele sair assim — diz o rapaz, jogando-o com certa violência na cama sob a janela: apesar dos olhos entreabertos, Karon está desacordado, e o motivo é implicado pelo vermelho manchando os cabelos azuis. — Ou ele já morreu, sei lá. O que você faz fazer?

— Não sei, Teodoro.

— Dreadnought. Não diga esse nome assim. As paredes têm ouvidos e ninguém pode saber que estou aqui. O que você vai fazer? — insiste. — Não tem como você ficar consertando ele para sempre.

— Eu sei que não tem como, mas o que posso fazer se ele trabalha para- para ele? Para o nosso pai?

— Façam que nem eu. Vão embora. Sumam.

— Não sei se podemos sumir a esta altura do campeonato.

— Você já é invisível. Só falta ele. Um a mais, um a menos- qual a diferença? Ou vocês somem ou ele morre. Na real, até parece que ele vai trabalhar na intenção de morrer. Essas pernas, hein? Não são grandes o suficiente para ele, ele fica reclamando da coluna o dia todo, o andar dele está esquisito e ele está todo errado; eu arranjei para ele uns modelos novos mas ele recusou; qual o problema dele? E aí me aparece querendo matar peixe grande, mas ele não tem mais a destreza ou agilidade para isso porque está drogado a porra do dia todo, e eu estava passando por lá por coincidência quando vi aqueles leões-de-chácara, aqueles guarda-costas, sei lá, descendo a cabeça dele no asfalto. — Pausa. — Vê aí se ele morreu; ele tinha tido uma convulsão e espumado vermelho. Não sei se foi de overdose ou de ter apanhado tanto…

Mas Karon ainda não morreu — o coração segue batendo, o diafragma continua funcionando, as pupilas já reagem à luz e agora ele até pisca, mas não consegue formar frases, falar nada, emitir nenhum barulho além de um gemido patético.

— Leva ele num hospital — diz Dreadnought, as mãos na cintura. — Leva ele num hospital e acabe logo com esse sofrimento.

— Não posso. Se levar, vão descobrir quem é ele e ele vai preso.

— Ah, é verdade… mas é injusto; quem devia ir preso é nosso pai.

— Mas Karon também matou pessoas, então ele precisaria pagar por isso.

— Mesmo assim, ele não entrou nisso porque queria- é injusto. Uma pausa. Man-o’-War passa delicadamente a mão pela mistura empapada de cabelo e sangue.

— Quebrou aqui — constata. — Ainda consigo dar um jeito nisso.

— Você quer que ele morra?

— Claro que não, pelo amor de Deus. Eu só não sei o que fazer. Ele realmente parece que vai para morrer, pensa enquanto, após Dreadnought ter saído, retira as partes superficiais da sua própria cabeça, e então uma placa adequada, e, quando se aproxima com uma gilete para retirar o escalpo artificial de cabelo azul empapado de sangue, Karon lhe diz:

— Não faça isso. Eu só preciso descansar.

— Você vai morrer se continuar assim.

E o ciborgue abre os olhos secos e murmura:

— Eu mal estou vivendo. Morrer ou não- não me importa. Só não quero que você continue se mutilando por mim.

— Nós podemos fugir. Vamos para outro lugar. Tentar uma vida nova. Você não precisa ficar preso ao meu pai para sempre.

— Ele não é bem o seu pai, é?

— Ainda o considero como tal. — Um momento de silêncio. — Por que você não faz o mesmo que eu? Seu cérebro, sua personalidade, suas memórias, tudo transformado em um chip e passado para um corpo imortal.

Karon segura um riso.

— Você sabe que não é mais você mesmo desde que você morreu. Teria coragem de fazer isso comigo, também? Me deixar morrer e me passar a um corpo robótico? Sabendo que este Karon não volta mais?

E, acariciando aquele rosto quase azul de tão branco, enxugando uma lágrima discreta que cai do olho ainda humano, responde:

— O eu que morreu sente falta de você, é verdade. Ele está no além-vida e você teima em continuar aqui. Você também não gosta tanto de mim quanto gostava do eu que morreu. Eu amo você, por isso não quero ver você morto. Mas, se você concordar com isso; se eu puder te transformar em um robô feito eu; se eu puder dar descanso à sua alma e deixar ela junto do eu que já morreu, acho que ficaria tudo bem.

— Então vamos pensar bem nessa possibilidade.

— Karon- você realmente quer morrer?

— Alguém que não quer morrer volta para casa semanalmente sem partes do corpo?

Há o som do ar-condicionado e da TV ligada no baixo e do helicóptero passando sobre o shopping center.

— Sinto muito por não ter podido te agradar como o eu morto agradou.

— Não se preocupe — diz Karon. — Não tenho nada contra você. Só contra a minha situação. Acho que fiquei maluco naquele dia que você morreu. Fiquei desesperado. Disse pro seu pai que faria qualquer coisa para pagar a operação, a transferência das memórias, da personalidade, tudo.

— Porque ele não queria.

— Porque ele prefere ver vocês mortos.

— E aí veio a primeira dose do coquetel.

— E eu fiquei viciado e minha vida ficou uma merda e eu percebi que não tinha mais o cara que eu amava, tinha era uma cópia de latão. — Pausa. — Isso te ofende?

— Não sinto dor.

E, suspirando, Karon diz:

— Imaginei.

— Na verdade, acho que a questão é mais profunda que você não ligar para mim. Você realmente me odeia.

— Acho que sim.

— Senão não se machucaria e aceitaria eu me mutilar para te salvar.

— É. Acho que eu te odeio tanto quanto me odeio.

— Hm.

— Acho que te considero uma mentira. Uma afronta à memória do Man-o’-War que eu amei. Do Manoel que eu amei. Amo. Você na minha frente, todos os dias, dormindo comigo, ao meu lado, me fazendo cafuné, me beijando, dizendo que me ama, me protegendo, me salvando- tudo isso me dá muita raiva. Me faz pensar que eu fui muito idiota em me deixar virar um drogado assassino em prol de alguém que nem é real.

— Sinto muito.

— Tudo bem. Então, me faça um favor e me bote para dormir. E pode pegar tudo que era seu de volta. E faça o que quiser comigo- se o meu corpo estiver congelado, bem conservado, quem sabe um Karon de metal não te apeteça?

— O Karon de metal vai me odiar e se odiar tanto quanto você se odeia e me odeia.

— Então reprograme ele para que ele fique agradável. Ao menos ele não poderá ser um drogado.

— É verdade.



Nesta noite, enquanto prepara e injeta nele doses e mais doses de analgésico, sedativo, anestésico, até que ele durma e durma para não acordar mais, Man-o’-War descobre que sente dor.