shinsekai

Espaços em branco

Barra da calça úmida e ar pesado. Um livro à frente, uma camisa, “oi, oi” no segundo andar do edifício. Lá fora chove, e ele está sozinho.

Este protagonista trabalha em um museu. Não é uma profissão de bom retorno – ouça, helicópteros voam sobre nós – mas um emprego é um emprego. Um móbile se agita sobre o salão principal, impulsionado por vento nenhum, e estão reformando algumas salas – sons de coisas caindo e batendo – e já passa meia hora do combinado. Ouve a música vinda de outras salas, olha para a saída e para a camisa sobre a mesa.

Dor de cabeça. Cheiro forte de tinta, estampidos – fome. Há uma pastelaria próxima, mas este protagonista não sairá. Sozinho: seu celular no modo avião, e ninguém se dá conta que ele existe, está lá e está sentado à mesa, aguardando.

Buzinas: não são os alunos que ele espera. Vento frio bate, e ele põe o uniforme sobre a roupa.

A existência é calma e entediante, repetitiva: a rotina é invencível, impossível, e os dias parecem todos iguais, repetindo-se como numa fita cassete constantemente rebobinada. Este protagonista sabe que a turma que lhe será conferida só chegará às duas da tarde, e que eles passarão apenas uma hora e meia fazendo um passeio, e que irão embora sem gravar seu rosto, seu nome. Eles, também, serão apenas conceitos na mente do protagonista: a palavra alunos, que pode ou não ser corrigida e adaptada com a experiência, mas que certamente terminará como alunos, pequenos, escola pública, interessados, agitados, e qualquer outra junção de adjetivos e substantivos.

Ele alcança o livro e o abre, passa os olhos pelas palavras e o fecha. Apesar de saber o que está escrito, o tédio o impede de se concentrar: as palavras são registradas por suas córneas, mas a conexão com o cérebro falha, e tudo que ele entende é ______________.

Suspira. Alguém grita com outra pessoa. Um grupo de jovens passa por ele e pegam as cadeiras vazias à sua volta, levando-as a outra mesa.

A chuva aperta lá fora. Agora quem entra o faz com sapatos e barras de calças molhadas, capas e guarda-chuvas pingando. Corrige sua ideia anterior: chegarão duas e meia da tarde, porque houve um acidente em algum canto do trajeto. Um carro derrapou e o fluxo se tornará lento.

Por precaução, põe um casaco e fecha o zíper até o pescoço.

Agora o celular exibe um jogo colorido e este protagonista joga sem muito interesse, por pura obrigação. Terminadas suas vidas, guarda o aparelho de novo e pega o livro mais uma vez. Sente que não passará nunca da página cento e dois, e está preso nela desde que a rotina assassina se instaurou em sua vida. Ele chega ao final da página, mas esquece o que leu e se vê obrigado a recomeçá-la, como Sísifo que inutilmente rola a pedra ladeira acima. Os dias são todos iguais, afinal.

Um casal puxa as cadeiras vagas de outra mesa e as colocam a em que este protagonista está sentado. Sentam-se um de cada lado, dão as mãos e olham-se apaixonadamente, tecem promessas de amor com suas vozes e olhares e eventualmente passam a conversar sobre negócios e o tempo. Eles dois não têm rosto: novamente, para o protagonista, são o conceito casal, de aparência e personalidades irrelevantes, de forma que, quando os encara, ele vê ______________.

O mundo nunca mudará. O casal continua conversando sobre o futuro, os filhos, as empresas, e o protagonista continua encarando o nada com olhos vazios, sem piscar, recostado preguiçosamente na cadeira. Eventualmente a conversa deles para de fazer sentido e se torna ______________. Os sons entram por seus ouvidos, mas não registram; nomeadamente, tornam-se vácuo.

E isso não está previsto em sua rotina: o protagonista não sabe se é ele que desaparece ou se o mundo é que acaba à sua volta, mas finalmente venceu a repetição dos dias, então inspira, expira e relaxa. Está confortável, os dedos das mãos entrelaçados sobre o colo, um sorriso discreto no rosto.

Com seu sumiço ou o fim do mundo em andamento, a próxima coisa a ir é o frio, que se torna ______________: também não sente calor, e nem desconforto; sente ______________. Sua barra da calça seca, o som do casal, das obras, das buzinas desaparece. Quando tudo ao redor passa a sumir, ceder ao vácuo e se tornar o nada, ele tem a impressão de que isso não é apenas sua morte: a rotina quebrou-se e com ela foi a realidade deste mundo.

Ele se levanta, deixando o livro e o casal para trás. Enquanto a lógica deste mundo desaparece lentamente, ele aproveita para experimentar a liberdade. O sol agora está se pondo e o céu está misto de roxo, laranja, azul, preto, rosa, vermelho; as nuvens parecem pegar fogo. Sentado de frente ao mar, aguarda.

E tudo, eventualmente, torna-se ______________.