shinsekai

Axis Mvndi - IV

SIC TRANSIT GLORIA MUNDI

Não morri porque já estou morto. Não é possível matar o que já morreu. Mas que dói, dói. O que é estranho, porque mortos não deveriam sentir dor. Ou é só o corpo que sente dor e não a alma?

Abriu os olhos. Estava sentado em uma rampa espiral onde, dentro do material transparente, estrelas nasciam, morriam, fundiam-se e dançavam com planetas à volta, infinitamente, eternamente. E, se estava sentado, não poderia ter perdido o corpo da cintura para baixo.

Olhou para baixo. Suas pernas estavam lá. Seus pés se mexiam. Desafivelou o cinto da túnica acinzentada e a levantou: onde os mensageiros cortaram havia uma linha grossa e prateada, como uma cicatriz, como uma lembrança. Então, pegou a gaiola dos vaga-lumes e os encarou de cima a baixo, murmurando-lhes:

— Estão feridos? Algo doeu? Não morreu nenhum, morreu? — perguntou, abraçando então sua alma com cuidado, e suspirou e fechou os olhos, a bochecha encostada no metal escuro. — Ainda bem. Eu penso… o que será que acontece se eu libertar vocês? Ou, o que acontece se eu comer vocês? Recupero o que é meu? Vou deixar isso para depois. Para quando estivermos para sair. Aí como vocês que nem fiz com meus filhos e volto inteiro.

Com um sorriso e uma risada tola, levantou-se e olhou para cima, mas não conseguiu identificar o fim da rampa. Só lhe restava subir.

— E quem vai me encontrar aqui? — perguntou para o vazio. — Não há ninguém que possa me guiar?

Mas seu pedido ecoou e desapareceu no escuro. Então só lhe restou andar, e sentiu falta da melodia dos degraus, dos arpeggios e das cordas, dos sons que tinha descoberto e esquecido. O andar pela rampa não fazia som: sentia que deslizava como se nem ao menos existisse, já que não produzia nenhum sinal de que estava lá. Nem pegadas, nem barulhos; a sujeira das solas de suas botas desaparecia ao tocar o berçário de mundos sob si.

E eventualmente o caçador se cansou. Entediou-se, sentiu que andava havia meses e anos e eras e que não chegava ao topo, então deixou a aljava e o arco de lado, tirou as botas e as meias e tocou o piso gelado com os pés descalços. Deixou a gaiola às suas costas, junto da capa e do gorro longo, e deitou-se, aguardando, observando a dança celestial no piso.

Tocou com a mão espalmada no material transparente que protegia o berçário e forçou. Lentamente penetrou-o, afundando até o pulso, e pôde tocar as estrelas fixas e móveis, os cometas e nebulosas, as galáxias e buracos negros; mudou-os de lugar, jogou uns para um lado e outros para outro. Arrancou de lá três sóis e jogou-os no abismo, observando com curiosidade sua trajetória: uniram-se os três, brilharam e caíram.

E o caçador suspirou, deitou-se de bruços e, de barriga para cima, esperou. O berçário sob si mudou, evoluiu e se desenvolveu; estrelas morreram e nasceram, dançaram e criaram melodias e histórias.

Suspirou poeira e ar quente. Seu corpo ficava frio e pálido, macilento e sem cor, e o caçador pensou ao fechar os olhos, desejando não mais abri-los: Deve ser agora que minha carne morre de vez. Mas, no final das contas, eu descobri que tudo aqui é Deus. Ao menos isso serviu de alguma coisa.

Encostou a bochecha no chão e esperou. Sentiu-se ficar mais frio, mais frio; os membros tornaram-se rígidos e a respiração ficou difícil. Quando já contava os inspirar laboriosos, um… dois… três…, ouviu a língua celestial e seu corpo foi inundado por calor e vida. Ficou de pé em um pulo porque parecia a coisa mais óbvia a ser feita, calçou meias e botas e pôs a capa e a aljava e o gorro e prendeu a gaiola de sua alma consigo, armou o arco e algumas flechas e correu sem saber porque corria. E, a cada passo, seus pés entravam no material transparente do berçário de estrelas e mundos, salpicando e borrifando líquido amniótico como se corresse em poças d'água.

O que surgiu não foi alguém que lhe chamava e nem um novo ambiente aconchegante: foi a mais gigantesca criatura que já tinha visto. Fez-se em um raio no meio da espiral e estendeu-se, alargando também o raio da rampa, e o caçador quase tropeçou e caiu com o impacto, mas os dedos encravaram-se na água, no vidro, no cristal e nos mundos que se inventavam, de forma que ele pôde se puxar para cima com tamanho esforço que precisou se deitar e respirar fundo. Quando se ergueu, viu: os ombros de milhas de largura, os olhos inteiramente pretos como o piche, a pele azul, o martelo colossal que carregava e as labaredas que saíam de sua boca quando ele falou em língua angelical.

O caçador engoliu em seco. Os vaga-lumes se agitavam e balançavam a gaiola.

E o anjo negador repetiu o que quer que tivesse dito, mas o caçador não soube responder àquela pergunta e nem soube se eram perguntas que ele fazia. O fogo sacro chegou perto e o fez suar, chamuscou a ponta de sua capa e de seu gorro, mas ele prendeu a respiração, mirou e atirou. As flechas não chegaram a atingir o anjo, então o caçador sacou sua adaga, aguardou o momento do golpe com o martelo e subiu no gigantesco pulso, pego de surpresa pelo impacto e pelo vento que tinha a força de um tufão. Agarrou-se com todas as forças nas pulseiras e argolas, ergueu-se e seguiu, sentindo-se como uma formiga diante da majestade daquela criatura cujos movimentos eram lentos demais para impedi-lo de avançar. Cada tapa ou safanão era facilmente esquivado, mas o caçador teve que andar por tanto tempo que chegou a esquecer do que fazia.

Lembrou-se ao ver os olhos negros e as labaredas que saíam daquela boca. Pousado no ombro, observando com maravilha o anjo titânico: o queixo forte, a pele argenta, os lábios belos, a língua vermelha, as centenas de asas cintilantes.

Encravou a adaga naquela artéria e viu que a área ao redor se escureceu, então encravou de novo, de novo, e de novo, até sair um filete de sangue tão vermelho quanto o seu próprio; a lâmina presa, puxou-a para o lado e abriu a aorta. Carmim jorrou com pressão, quase o levando junto, e ele fugiu de volta à rampa em uma confusão de mãos, berros e golpes frustrados. Quando ia pular da ponta do indicador do anjo de volta para o berçário em espiral, sentiu um puxão nas suas costas.

Escorregou na rampa, rolou e bateu a cabeça, os joelhos e os cotovelos. Levantou o rosto e afastou os cabelos da cara para ver que o sangue inundava aquele lugar, que aquele lugar tinha um chão e que do vermelho nasciam plantas e pássaros.

Sentiu-se leve. Tateou-se. Em suas costas não havia mais a gaiola. O coração parou, os dedos tremeram, as pernas perderam a pouca força que tinham. Observando a cachoeira de sangue e o enorme cadáver que lentamente era tomado por lírios, abriu a mão direita que até então estava firmemente trancada em punho: na palma, um vaga-lume.

Botou-o na boca e engoliu-o sem mastigar.

Momentos depois, vomitou borboletas e as deixou ir.



Eu sou vanitas e sofia e tudo mais que existe neste mundo, pensava enquanto sua mente estava anuviada demais para produzir pensamentos coerentes. Não deve nem mais existir casa para onde voltar, pensava enquanto arrastava-se rampa acima, sempre mirando o cadáver angelical. Não sei nem mais se eu tenho um futuro, pensava enquanto penetrava as mãos nos universos sob si e os engolia, tomando para si pedaços e mais pedaços do eixo do mundo. Se não tenho mais alma, isso deve ser um bom substituto para ela. Isso deve bastar, pensava enquanto se deitava, em posição fetal, os olhos fechados e o corpo gelado, dolorido. Nasça, história infinita de um novo mundo… na minha alma, no meu coração, na minha carne, nos meus olhos, em ambas minhas mãos, no meu sangue e sopro. Se não posso sair daqui, tornar-me-ei uma viga do universo. Em mim nascerão novos mundos. E todos eles serão a minha alma… E, antes de respirar pelo que achou ser a última vez, pensou: Realmente. Tudo é Deus.

Em seu corpo pintado de carmim pelo sangue do anjo nasceram rosas e lírios, e ele sentia as raízes encravando-se e penetrando seu corpo, seus pulmões, sua língua, suas veias, suas artérias, seus olhos, seu estômago, seus ossos. Sem mais respirar, aguardou morrer, mas logo descobriu que isto não seria o suficiente. E estudou cuidadosamente as revoluções e evoluções dos sistemas sobre os quais estava deitado, suspirou com hálito de amêndoas e tentou morrer.

Não conseguiu.

Então se levantou de supetão, num frenesi febril e ardente; arrancou todas as flores de seu corpo e correu como pôde, arranhando-se e cortando-se e abrindo buracos em si a cada planta que puxava, ferindo-se e manchando tudo de um sangue novo e azulado; ao chegar no topo da rampa e arrombar a porta que lá havia, já não tinha mais rosto e guiava-se apenas pelo instinto e pelo conhecimento do caminho.

Sentiu que caía.

EPÍLOGO: TEMPUS FUGIT