shinsekai

Axis Mvndi - III

ET IN ARCADIA EGO

Não posso matá-los porque a morte é a separação do corpo e da alma. Anjos não têm corpos, então eles não podem morrer neste sentido. E não podem morrer espiritualmente porque são próximos a Deus. Então certamente não os matei. Fiz outra coisa com eles.

— Você os tornou mundanos.

Rutger abriu os olhos: à sua volta havia o céu infinito, um firmamento de vários tons de azul onde estrelas brilhantes estavam presas. Os degraus em que pisava eram transparentes como vidro, como cristal, e seguiam sem corrimão e sem apoio na mesma espiral sem fim acima de sua cabeça. Seu corpo ainda doía e ardia, as pernas formigavam e pareciam pesadas, e o caçador decidiu se sentar e respirar fundo, uma, duas, três vezes, o queixo apoiado na mão e os olhos fechados, matutando consigo mesmo sobre a natureza daquele lugar, o arco e as flechas em seu colo e a aljava e a jarra em suas costas, quando ouviu a voz repetir:

— Eu disse que você os tornou mundanos.

— Quem está aí? — perguntou Rutger, abrindo os olhos e levantando as sobrancelhas. — Outro anjo? Algum com que eu consiga me comunicar?

— Longe disso, rapaz. Me encontre. Não será difícil.

— Estou exausto. Me dê um minuto.

— Você correu por anos, por quilômetros, por vidas inteiras e ainda está cansado?

Rutger suspirou e esfregou os olhos, esfregou o queixo e olhou a palma da mão, prateada com seu sangue.

— Outra voz descarnada — murmurou para si mesmo, e então para a voz: — Você pode me dizer que lugar é esse?

— Esse lugar é Deus, garoto!

— O quê?

— Você está no corpo de Deus! Você é como um inseto, uma bactéria, um vírus que entrou aqui e ativou as defesas do organismo santo. Talvez seja um experimento sagrado- acha que Deus deixaria você entrar sem que permitisse?

— Hm — fez, esfregando então a testa. Tirou os cabelos longos do rosto e o gorro cinza e longo, arrastou-se até a ponta dos degraus e pôs as pernas para fora, para penderem sobre o abismo. — E o que mais?

— E o que mais você terá que descobrir encontrando-se comigo. Não será difícil.

— Quem é você?

— Sou alguém que nasceu muito depois de você. Que lembra do seu futuro.

— Hm.

Levantou-se então, as pernas ainda parecendo ranger, enferrujadas, e pôs-se a subir os degraus, um por um: cada passo era uma nota, um dó, fá, sol, mi, acordes; os tons tornavam-se arpeggios, vibratos, ribattutas, cambiatas e coloraturas. A melodia que formavam era em um capriccio que falhava em harmonizar, o som de instrumentos de cordas — rabecas, violinos, violoncelos — unidos às percussões — e ouvia os pratos batendo — e a coisas que nunca antes ouvira mas cujos nomes conhecia: teclados, saxofones, cristais, hidraloufones, o silêncio eterno dos espaços infinitos.

E tentou fazer música: pulou degraus, subiu de três em três, pulou em dois ao mesmo tempo, um pé em cada; desceu correndo, subiu correndo, tocou em dois com os pés e dois com as mãos e caiu na risada, sentindo-se leve e recuperado. Os membros haviam recuperado o movimento perfeito, seu sangue espectral não mais vazava e sentia-se preparado para enfrentar o que viesse. Então correu como podia, como estava acostumado, sempre olhando o horizonte — que ameaçava tornar-se amarelo, laranja, vermelho, roxo e preto —, o fundo branco e o topo escuro, salpicado de estrelas de todas as cores.

Isso aqui é Deus?, pensou, e neste momento ouviu a língua angelical ribombar e tropeçou em seus pés, em algo; caiu e apoiou-se com as mãos e cotovelos no último momento e sentiu um arrepio, um calafrio de se imaginar caindo no nada eternamente. Olhou por cima do ombro: enrolando seus pés havia serpentes de bronze que brilhavam, incandescentes, e faziam fumegar suas botas de couro pobre, faziam fumegar seus tornozelos, calcanhares, pele, gordura, músculos e ossos. Com um grito, chutou-as e apontou-lhes flechas; elas se ergueram e sibilaram e foram perfuradas, derretendo em vidro e água.

Rutger se apoiou nos degraus para se colocar de pé, mas deles nasceram mais serpentes. Só pôde correr, de olho tanto no chão quanto no caminho, e mais de uma vez quase perdeu a direção e foi ao abismo.

— Onde está você, moleque? Apareça logo! Pare de brincar de corrida e apareça logo!

— Mas como eu faço isso?! — berrou de volta à voz desencarnada. — Não sei me mover por aqui!

— Como você se move por Deus? — perguntou a voz, como se para si mesma, e, após alguns momentos, declarou: — Dê um jeito.

Pisoteou outra serpente e levantou os olhos: à sua frente, tão próximo, estava um anjo. De três pares de asas — dois deles que cobriam seu corpo e seu rosto, e o último que lhe permitia voar — incandescentes e vermelhas, chiando e emitindo fogo carmim, ele repetia as mesmas sílabas incessantemente, a mesma frase, como um mantra, como uma oração que por um momento desconcertou Rutger. As mãos fortes saíram de trás do par de asas e o tatearam com violência, tocaram-lhe nos ombros e na face e então no pescoço, o qual apertaram.

— Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos, a terra inteira está cheia da sua glória! — berrou a voz, em um tom que Rutger não soube identificar se era desdém ou maravilha. — Acabe com ele, rapaz!

Mas seus pés já não tocavam mais o chão e não conseguia mais respirar, ainda que não sentisse tanta necessidade de fazê-lo: notou então que sofrer sem morrer era quase um tipo de inferno, e não queria se deixar cair nele e nem cair em punição eterna. Atrás de seu algoz surgiam mais e mais anjos, de asas de todas as cores de chamas: vermelhas como o sangue, amarelas como o pus, verdes como maçãs, verdes como as águas, azuis escuras como o céu à noite, roxas como violetas, brancas como o sol, pretas feito as sombras. Tateou sua adaga de caça e enfiou-a nos pulsos do serafim, que sangrou rosas e lágrimas, e segurou-se nele e em suas asas incandescentes. Cortou seu pescoço e banhou-se no conteúdo que vertia, jogou-se em fé contra outro e contra outro e, quando alcançou novamente os degraus, admirou a cachoeira de flores que jorrava dos serafins derrotados, seus corpos imóveis e parados em um tempo que não existia mais.

Respirou fundo. Os calcanhares ardiam. Um, dois, um, dois, voltou a correr.

No quinto passo, o cenário mudou novamente: estava em uma sala de marfim e ouro, de vista para um sol que se punha. O homem que o esperava era loiro e alto, de finas vestes em estilo desconhecido a Rutger, e disse-lhe quando chegou:

— Finalmente, rapaz! Bom saber que está vivo. Quer alguma coisa? Sente-se comigo. Vamos comer.

Rutger viu a cornucópia sobre a mesa de mármore, dividindo espaço com frascos e vidros de formas estranhas, contorcidos e cheios de líquidos de diferentes cores e aparências. Suspirou e concordou.



— Então quer dizer que você se encontrou com outra pessoa aqui — disse o alquimista, comendo bananas e maçãs, kiwis e caquis, cajus e abius, ajurus e acerolas. — E você ainda não sabe onde está.

— Ela me disse que aqui é sofia — disse Rutger, tomando a água de uma jarra. — E também episteme, henosis, nous, pathos, logos, e o caminho da metempsicose. Não conhecia nenhuma dessas palavras, mas, depois que as ouvi, entendi seus significados. Já você… você me disse que aqui é Deus.

— Tudo a mesma coisa. Tudo-a-mesma-coisa. Tudo isso é Deus.

— E como eu faço para sair?

— Por que você iria querer sair de Deus? — perguntou o alquimista, embasbacado. — Você é louco?

— Porque, como você mesmo disse, eu sou um intruso. É desrespeitoso e herético invadir Deus.

— Como eu disse, Ele te pôs aqui. E vai sair caso Ele queira.

— Mas se Deus é um lugar, como Ele pode ter consciência?

— Como não teria?

— Isso me dá dor de cabeça — resmungou, esfregando os olhos. — Quero ir embora porque eu não tinha morrido.

— Aqui nem é a morte.

— Sim — disse, apoiando os cotovelos na mesa e o rosto nas mãos, desviando o olhar para o lado, para a janela. — Mas certamente seria melhor se eu estivesse morto. Aqui é um lugar espiritual, porém, e eu tenho um corpo aqui dentro, então não sei nem se posso ter o corpo e a alma separados nesse lugar. Os anjos ferem o meu corpo, não a minha alma.

— Ah, rapaz… eu não sei mais do que você está falando, também — disse o alquimista, pondo os pés sobre a mesa, desviando o olhar para o outro lado. Para outra janela. — Mas, se você quer sair daqui, voltar para a sua vidinha… eu não sei se isso seria possível. Isso significaria que você é um profeta. Afinal, teria subido o eixo do mundo e voltado para contar a história. E não tem nada sobre você aqui — disse, tirando debaixo da mesa um livro em capa de papel, cuidadosamente costurado, reto e bem cortado, bem impresso, de cores vivas que pareciam até artificiais. — Sabe ler?

— Não. E nem escrever.

— Aqui são As Profecias de Nostradamus — disse o alquimista, muito sério. — Um maluco como você, mas de alma boa. Sabe quem é Nostradamus?

— Não faço ideia.

— Como não? Ele fazia previsões. Muitas delas se concretizaram. Outras, nem tanto. Outras, somente em outros mundos.

— Por curiosidade, quando foi que ele nasceu?

— Mil e quinhentos. Por aí.

— Eu vim do ano de mil e quatrocentos — murmurou, torcendo a boca. — E você?

— Ah- mil e oitocentos, mas não conte para ninguém. Entendi- é impossível ter uma profecia sobre você porque em mil e quinhentos você já estará morto. Então você não é mesmo um profeta.

— Então isso quer dizer que ou eu morro aqui, ou esqueço tudo que vi, ou não consigo voltar.

Com isso, os dois ficaram em silêncio. O alquimista pôs mais água e vinho nos copos e, ao vê-lo o fazendo, Rutger pôs a jarra que carregava consigo sobre a mesa com um suspiro, com derrota.

— O que tem aí? — perguntou o alquimista, alcançando mais um mirtilo.

— Minha essência — disse. — Ao menos foi o que a abadessa me ensinou que era.

— Deixa eu ver isso.

O caçador concordou com a cabeça e o alquimista retirou a tampa da jarra. Derramou as estrelas em um copo grande e coçou a barba, observando-as com cuidado.

— Eu posso- — começou, hesitante, — fazer um experimento?

— À vontade — disse Rutger, sem dar-lhe maior atenção.

— Mas é a sua essência que está em jogo. Não devia aceitar tão levianamente.

— Eu vomitei isso aí, deve ter mais aqui dentro para que eu possa repetir o feito — disse, batendo a mão espalmada no peito e estômago. — Além do mais, se eu não vou voltar… então tanto faz por mim. Se aqui é Deus, então estou em boas mãos. — E espalhou o corpo sobre a mesa, quase deitado sobre ele. — Só queria ter podido me despedir de Thirza… queria saber o que houve com Wiebe… e queria ter podido pedir desculpas aos meus filhos. Ah, Ida e Piet… o pecado que eu cometi não tem mesmo perdão.

— Qual pecado, se me permite saber? — perguntou o alquimista, levantando-se e levando o copo alto até seus vidros e frascos. — Lembre-se de que Deus é bom, e se você se arrepender e aceitar Jesus Cristo como seu salvador, ele vai-

— Eu comi os corpos dos meus filhos.

O alquimista então se calou. Rutger escondeu o rosto atrás dos braços e prosseguiu:

— Estávamos morrendo de fome. A colheita tinha sido péssima. Era o terceiro ano seguido… eles não resistiram.

— Eles estão em algum lugar melhor, agora.

— E você? Por que está aqui?

— Porque tenho paz para experimentar como quero — disse. — Posso sair quando quiser, mas gosto de ficar aqui e me aperfeiçoar.

— Então aqui é sofia.

— É Deus.

— Hagia sofia.

— De onde você tira tantas palavras inteligentes, menino? — riu o alquimista. — Para alguém que não lê e nem escreve…

— Elas chegam à minha cabeça como se viessem flutuando — disse, cutucando a têmpora direita com o indicador.

— Então sua mente se abriu mesmo para a sabedoria sagrada que há neste lugar. Que facilidade, que alegria eu sinto por você!

Com um longo “hmmm”, Rutger se levantou e pôs-se a andar pelo cômodo. Tirou os livros das estantes e passou os olhos por cada, imaginando que logo poderia ler — mas não pôde — e, em seguida, foi olhar as janelas, os campos sempre ao pôr-do-sol. O vento fresco batia em seu rosto e o caçador quase adormeceu apoiado no batente, então percebendo que não dormia há horas, dias, meses, anos. Tornou a se sentar à mesa. Comeu frutas-do-conde e uma melancia, mas logo se enjoou e tomou uma cerveja forte e escura, de gosto pastoso. O tédio o consumiu, e ele se encurvou sobre a mesa de novo, fechou os olhos e deixou-se escorregar ao sono.

E, quando despertou, à sua frente havia um copo cheio de um líquido brilhante, cuja luz era tão forte que feria seus olhos.

— Sua essência, destilada. Concentrada — disse o alquimista, apoiando-se no tampo de granito. — Beba.

Sem pensar duas vezes, o fez. Tinha um gosto doce como o das frutas que comera, mas a consistência era grossa, incomum, como se fosse metal derretido.

— E então? O que sente? — perguntou o alquimista, sorridente.

Ele vomitou vaga-lumes.



Entregando-os todos que conseguira pegar em uma gaiola de barras muito finas e próximas, o alquimista disse:

— Me perdoe. Não sabia que isso ia acontecer.

— Tudo bem — disse Rutger, dando de ombros, observando com atenção os insetos de asas azuis, pretas, brancas, transparentes, iridescentes, coloridas. — O que são eles?

— A sua alma inteira.

— Agora eu perdi tudo?

— Acho que sim. Me perdoe.

— Me sinto mesmo mais leve — disse, tomando a gaiola nas mãos. — Feito de estrelas, feito de vaga-lumes… brilhando nasceram, brilhando sumirão. As almas, quero dizer. Eu agora lembro de quando não tinha nascido…

— Bem, você ao menos não ficou louco. Pode ser que sua alma fosse ainda mais velha. Aqui eu tenho um monte de registros de nascimento, de batismos e de mortes… se quiser, talvez se encontre em algum deles. Ou as suas vidas futuras. Pode ser por isso que não há nada sobre você, desbravador de Deus… porque você morrerá e renascerá.

— Pode ser. Obrigado pela ajuda. Eu vou andando agora, tudo bem? Ajeitou-se todo; pegou a gaiola pelo aro superior e guardou adaga, aljava e arco.

— Agora que não tenho mais alma, me sinto mais seguro de continuar subindo. Porque eu realmente morri — disse, a mão no peito. — Beber minha essência concentrada fez com que eu cuspisse minha alma fora, então eu morri e estou morto.

— É. Que pena. Me perdoe.

— Ao menos minha alma é muito bonita.

Subiu os degraus da torre de marfim, acenou e se foi.

Seguindo pelos degraus transparentes, rumo ao topo escuro, pensou: Talvez eu seja vanitas. E um invasor. Não é mutuamente exclusivo.

Talvez tudo isso aqui seja Deus. Não só o lugar, mas talvez a essência d'Ele esteja em todo o lugar. Talvez Deus seja uma interpretação. Talvez todos nós sejamos parte d'Ele…

A luz forte o cegou momentaneamente. Os três anjos que surgiram eram gigantescos, dez vezes maiores que o caçador, e tinham milhares de asas, milhares de olhos nestas e milhares de auréolas sobre suas cabeças tornadas invisíveis pela luz: eles mesmos eram estrelas e cercavam o caçador e a escadaria.

Mas Rutger, que não temia mais nada por não ter mais alma, prendeu a gaiola em seu cinto, sacou cinco flechas, armou uma e apontou. As espadas de lâmina cristalina desceram mais lentas do que o caçador esperava, então ele correu e atirou, correu e atirou, pulou e superou os vazios entre os degraus vazios e fez melodia. Cada flecha encravada também emitia uma nota ou um acorde e apagava a luz em um raio amplo; depois do que pareceu ser horas de confronto, os anjos haviam se tornado um céu estrelado e Rutger havia perdido uma das pernas e se arrastava, ofegante, pelos degraus vazados.

E, chegando ao topo escuro, quase tocando-o, quase atravessando-o, um dos mensageiros ergueu a espada e a abaixou: separou o caçador em dois, na altura dos quadris, e ele viu borboletas da cor da prata e do bronze saírem úmidas de seus ferimentos enquanto gritava. De seus intestinos nasciam raízes e caules e folhas, seus ossos desfaziam-se em pó de ouro.

Arrastou-se mais um pouco e ultrapassou o escuro.

4. SIC TRANSIT GLORIA MUNDI