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Axis Mvndi - II

HOC QUOQUE FINIET

Diante de Rutger Jaanssens havia uma torre infinita. De base enorme e gigantesca, parecendo ter o tamanho de uma cidade inteira, ela se estendia aos céus em toda sua glória cinzenta, de tons terrosos, marrons e vermelhos, cuidadosamente enfeitada com arabescos dourados. Neste local, o céu era lilás e as nuvens eram vermelhas; no topo brilhavam três estrelas alinhadas cujas luzes unidas não eram tão fortes quanto a do sol. No chão, grama esmeraldina que se estendia para todos os cantos, indefinidamente, e parecia subir ao chegar em certo ponto do horizonte, como se estivesse em um mundo côncavo.

Tateou-se. Não sentia frio e nem pavor; o rosto estava limpo e o gorro ainda estava na cabeça; a capa estava sobre os ombros, o arco em suas costas, a aljava estava cheia. O olifante ainda pendia em sua cintura. Respirou fundo e murmurou para si uma prece muda, sem pé nem cabeça, sem início e nem fim, só o sinal da cruz repetido duas vezes com um balbuciar desconexo.

Pôs-se a andar na direção da torre e logo descobriu que não se cansava. Andou pelo que pareceu ser minutos, horas, dias, mas em nenhum momento sentia as fraquezas da fome ou as dores da caminhada extensa; pensou então estou numa terra de abundância, mesmo que aqui não haja frutas e nem animais e nem pessoas.

E pensou, enquanto finalmente se aproximava da torre que ficava ainda maior e mais imponente, os arabescos reluzindo às luzes das três estrelas: ah, esse deve ser o Purgatório. Outra prece, outro sinal da cruz; Rutger encarou os gigantescos portões prateados, procurou o porteiro com os olhos, gritou “ei!” algumas vezes e soprou o olifante, mas ninguém o atendeu. Então só lhe restou empurrar os portões sozinho: com algum esforço, moveu-os; eles pareciam não ter um centésimo do peso que deveriam e se abriram, tornando-se ondas e cristais.

Ele entrou e os portões fecharam-se atrás de si, soando como trovões e areia. O interior era amplo, vazio, quieto; levantando o rosto, Rutger via o infinito. Poucas janelas pequenas, uma longa escadaria que seguia em espiral até o infinito, o lado direito sempre tocando as paredes; o caçador respirou fundo e decidiu que não havia nenhuma outra direção a ser seguida além do zênite. Pisou no primeiro degrau de pedra e aço, enfeitado dos padrões de prata e ouro e rubis, e pôs-se a subir, pensando sempre: se estou morto, logo alguém virá ao meu encontro. Este mundo não pode ter sido criado para mim. Não posso ser o único aqui.

E, enquanto subia, olhava pelas minúsculas janelas que eram ainda menores que seu tronco, mais estreitas que seus ombros, impossíveis de serem transpassadas: elas mostravam-lhe maravilhas, céus de todas as aparências e músicas de todos os povos, sons que nunca tinha ouvido e cores que nunca tinha visto. Um mar, um deserto escuro, um horizonte vermelho com prédios em silhuetas vermelhas, uma cidade estranha, cinza e eterna, um campo de flores brancas.

Seu pé esquerdo vacilou por um momento e ele quase tropeçou. Segurou-se no batente da janela para não cair e, ao se levantar, olhou seu nadir: abaixo de si, somente o infinito escuro e os enfeites metálicos que brilhavam suavemente como vaga-lumes em branco e dourado e vermelho, formando uma espiral descente e sem fim.

Rutger sentiu a respiração falhar com a visão da maravilha. Agachou-se, esticou o tronco e o pescoço e mirou o fundo da torre, calado, o ar preso dentro de si, os olhos bem abertos, e por um momento desejou cair e morrer lá mesmo, em um lugar tão bonito, onde seria ressuscitado no fim dos tempos e veria aquela beleza mais uma vez…

Preciso sair daqui, pensou, levantando-se com dificuldades, e deu mais um passo. Quando o pé tocou a pedra, o aço, a prata e o ouro, o ambiente escuro e estéril do interior da torre tornou-se um interior de uma casa, de chão de terra batida e teto de calhas. Ainda subia degraus, mas estes levavam ao segundo andar da construção. As paredes eram enfeitadas com quadros delicados e janelas amplas — e podia ver os campos extensos de flores e árvores frutíferas, borboletas e libélulas voavam entre as plantas e cigarras cantavam ao fundo — e o cômodo era repleto de móveis de boa qualidade, de madeiras nobres, metais, pedras preciosas e tecidos de todas as cores, porcelanas e chinas e as coisas mais finas que vinham do outro lado do mundo.

Sentada à mesa estava uma mulher, uma abadessa de roupas escuras e longas, que escrevia em um livro. Ela levantou os olhos, parecendo espantada, e disse, sua voz imponente, firme e suave:

— Olá. O que te traz aqui?

Rutger engoliu em seco.

— Eu não sei — disse. — Estava subindo escadas e parei aqui. Não sou ladrão, eu juro.

— Claro que não é — disse ela, deixando a pena de lado e apoiando os cotovelos na mesa. — Mesmo que quisesse roubar algo daqui, não teria para onde levar. Iria para onde? Fugiria por aquela porta? Correria para sempre naqueles campos e não chegaria a lugar nenhum, até voltaria envolto em tédio, pedindo perdão e ajuda. — Pausa. Seus olhos escuros desconcertavam o caçador. — O que te traz aqui? — repetiu, mas Rutger não soube responder. — Se veio parar aqui, é porque quer alguma coisa.

— Quero ir para casa — ele disse de supetão, como numa epifania. — Quero saber se morri. Se aqui é o Purgatório. Como faço para ser julgado e como faço para entrar no Reino de Deus.

Ela riu.

— Isso só você poderá dizer, não eu — disse, levantando-se. — Não sou qualificada para responder estas coisas. Isso é entre você e Deus. De que ano você veio?

— Do ano de mil e quatrocentos e… quinze.

— Você veio de muito tempo depois de mim. Como estão as coisas naquele mundo?

— Há fome e frio. Você está morta?

— Desde o ano de mil cento e setenta e nove de Nosso Senhor. Não, morrer é uma palavra muito forte. Mudei. E aqui passo os meus dias: aprendendo. Aqui não é o Purgatório e nem a Escuridão. Aqui é outro lugar. E você não deveria estar aqui.

— Como?

— Por que não se junta a mim? Vamos comer alguma coisa e conversarmos melhor.

— Descobri que não preciso comer-

— Mas certamente se sentirá melhor depois de lembrar como foi sua vida antes daqui. Quanto tempo já pode ter passado? Dias, anos? Séculos? Milênios?, desde que algo deu errado e você veio parar aqui, mesmo ainda estando lá; uma existência dividida em duas? Eu sou uma acadêmica do abstrato… só posso te orientar, mas não te dar respostas concretas.

Assim, Rutger sentiu os olhos encherem-se de lágrimas, o corpo ficar fraco e, descendo as escadas para o mesmo andar da abadessa, lamentou-se.



Sentado à mesa com ela, diante de uma cornucópia de frutas exóticas e jarras de vinhos fragrantes, Rutger hesitou em comer, mas, diante da insistência da abadessa, o fez. Comeu das frutas em formato de estrelas e corações, de sabores doces e azedos, texturas finas e fibrosas e, quando se deu conta, sentia-se satisfeito — não que sentisse fome antes, mas seu estômago estava confortavelmente estufado e os gostos em sua língua misturavam-se e mostravam-se novos, coisas que nunca havia provado antes em sua outra vida. Depois disso, a abadessa pôs-se a falar, mirando algum ponto além da janela:

— Este é o eixo do mundo. Aqui se conectam todos os planos e todos os tempos, todas as terras e todos os momentos que existiram ou existirão. Aqui é sofia: o conhecimento divino infinito. Aqui também é episteme, henosis, nous, pathos, logos e o caminho da metempsicose. Aqui é o inferno e o paraíso. Depende do que você carrega e os caminhos que você decidir tomar. Mas, como eu disse, você não devia estar aqui… você não está próximo de nada disso. Nem de sofia, nem de henosis, logos ou da metempsicose. Você é uma alma tão imperfeita e um corpo tão vivo…

— Antes de vir parar aqui — disse Rutger, pegando mais um cacho de uvas da cornucópia que falhava em se esvaziar —, eu vi a morte. Acho. Meu bom amigo Wiebe morreu na minha frente… e vi a nós mesmos e a outros mortos nos encarando.

— Como um vanitas — disseram os dois ao mesmo tempo, e Rutger se calou. A abadessa prosseguiu:

— Então você acredita que morreu por isso?

— Ou que fui apresentado ao conceito concreto da vanitas da qual o padre sempre falava… da brevidade da vida.

Levou a mão à boca, tapando-a. Os pensamentos e as palavras que chegavam à sua cabeça não eram os seus, não reconhecia como seus: o vocabulário, as ideias, a lógica, nada disso era algo comum a ele em sua vida pacata de agricultor, caçador, moleiro, artesão. E sentiu um vazio dentro de si, e então uma dor de cabeça tremenda, e as uvas caíram por entre seus dedos. Forçou-se a fechar os olhos firmemente e prosseguiu:

— Isto parece ser um aviso da brevidade da minha própria vida- da vida de todos, da vida do mundo? Não sei por que estou aqui e nem como vim parar aqui, mas parece que há algo importante para eu descobrir aqui, para eu entender…

A dor subiu, subiu, tornou-se enjoo.

Ele vomitou estrelas sobre a mesa.



Quando abriu os olhos, a abadessa segurava as estrelas nas mãos. A sala estava escura e lá fora via os braços e rastros do éter divino, enfeitando como joias o firmamento e as esferas celestiais segurados por grossas vigas douradas.

— Vanitas — ela repetiu, despejando as estrelas no vinho. — Talvez seja este o seu propósito. De avisar a todos o que haverá… mas você não está morto — insistiu. — Longe disto. Você deve ter se tornado a própria vanitas… o próprio memento mori. Isto aqui é você — disse, entregando-lhe a jarra de líquido brilhante. — Fique com isto e não perca.

— Se isto sou eu, então como eu estou aqui?

— Mesma essência, mas pessoas diferentes.

— Como a Santíssima Trindade?

— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.



— Você deve ir. Deve achar seu caminho pelo eixo do mundo.

— Então eu vou subir.

— Até onde?

— Infinitamente. Quero ver onde esta escadaria dá.

— Deve dar no Paraíso — disse a abadessa, e Rutger notou dúvida em sua voz. — Ou no infinito. No fim do mundo. Na borda das esferas celestiais. Sê humilde e não interrompa o bom andamento deste eixo.

Rutger agradeceu, beijou suas mãos, tampou a jarra de vinho e pôs-se a subir as escadas da residência da abadessa. Em três passos, havia voltado para a torre. E a última coisa que viu dela foi sua figura escura acenando.

Eu não sou vanitas, pensou enquanto prosseguia seu caminho acima. Algo deve ter dado errado… e vim parar aqui, mesmo não estando morto. Se alguém me pôs aqui, então deve ter o poder de me tirar. Mas e se ninguém me pôs aqui? E se foi um acidente, como o tropeçar numa pedra?

E se eu perfurei a divisão da matéria e do espírito sem querer e vim parar no eixo do mundo como se estivesse morto, mas ainda vivo, ainda imperfeito, mas não condenado ao inferno ou purgatório?

Eu não sou vanitas. Eu sou um invasor…

E ouviu um estrondo. Olhou para baixo, o coração na boca, mas, ao não ver nada de diferente, amarrou a jarra nas costas e tomou nas mãos o arco e três flechas. Como se esperando uma caça, andando sem fazer barulho e sem assustá-la, subiu degraus e mais degraus, até ver um vulto vindo de baixo: atirou duas vezes e este vulto caiu sem que pudesse distinguir sua forma, mas escutou seu canto: um rosnado com lamento agudo que afastou-se e desapareceu.

E ouviu a melodia e o rimbombar de trovões e tambores, vozes e mais vozes cantando em língua que não conhecia. Acima de si, em quatro, cinco voltas da escada, um fim brilhante. Acelerou o passo: pôs um pé na frente do outro, primeiro hesitante, mas correu assim que os vultos retornaram.

Atirou sem hesitar e viu: das dez, vinte criaturas que vieram ao seu encontro, ao menos metade delas tinha quatro faces — a de um leão, de um boi, de uma águia e de um humano — e quatro asas vermelhas, conjuntas, infestadas de olhos de todas as cores que encaravam tudo e nada, piscavam e finalmente miravam o caçador; estes emitiam melodias maravilhosas na mesma língua que cantavam as vozes desencarnadas e vindas do nada, junto dos rimbombares e dos instrumentos cujo som nunca havia escutado.

Atirou mais uma vez no meio segundo de uma batida do coração: a cabeça de águia do mais próximo explodiu em flores vermelhas e dissolveu-se em vinho fragrante; as asas perderam o controle e as pupilas dos olhos claros diminuíram-se ao tamanho de um ponto. Antes de cair, emitiu poeira, areia de prata e ouro e rubi, bolhas de sabão e um sibilar melodioso.

A outra metade das criaturas era feita de rodas dentro de rodas e dentro de rodas, girando e girando e girando, pegando fogo em chamas frias; nestas rodas havia também olhos como os poros infectados na pele de um doente, como se os próprios olhos fossem uma infecção, uma doença a ser erradicada, que se multiplicava, tomava e tornava o corpo.

São anjos, Rutger pensou, e por um momento o braço afrouxou a puxar da corda do arco e o outro abaixou a mira. Mas as criaturas avançaram contra ele e ele novamente mirou-lhe as flechas, atirou e percebeu que sua aljava, tal qual cornucópia, não esvaziava-se. E pensou: os anjos são santos e nada mata a santidade, mas se algo me permite derrotá-los, isto só pode ser Deus. Só pode ser Sofia. Só pode ser este lugar em si, que também é santo.

Quando a flecha encravou-se numa das rodas dentro de rodas e repletas de olhos, as chamas tornaram-se prateadas e desfizeram-se como se fossem feitas de mercúrio e jasmins; as estruturas principais pararam de girar em sentido horário e passaram a girar em anti-horário, e comeram a si mesmas, tornando-se o nada.

Ou então sou eu que sou vanitas e estou mostrando a eles a brevidade da vida, pensou enquanto corria e atirava. Ou então sou eu que sou imperfeito e sujo e sou um invasor.

Olhou para cima — o fim brilhante aproximava-se — e sentiu dor, tropeçou e caiu de queixo no degrau; deste corte verteu sangue reluzente e prateado e, do da perna — a qual a cabeça de leão do querubim mastigava e esmagava — saía sangue da cor do bronze. A face humana do anjo encarava-lhe com ódio e abriu a boca para falar em sua língua sacra e celestial, mas uma flecha escura encravou-se em sua língua e garganta e ele se desfez, enchendo a torre do perfume de lavanda.

Rutger levantou-se, claudicante, e concentrou-se em correr e atirar. E as melodias angelicais ficaram cada vez mais altas, e os ataques tornaram-se cada vez mais frequentes, e o ar já tinha o cheiro de todas as flores do mundo, e ele próprio já era uma bagunça de bronze e prata e estrelas quando atingiu o fim daquela sessão e tocou no brilho acima de si. Ouviu o grito de bilhões de pessoas e pensou:

E se eu os matei?

3. ET IN ARCADIA EGO