shinsekai

Axis Mvndi - I

UBI SUNT

À sua frente só havia o infinito sem cor: os campos cheios de neve, os céus acinzentados, as árvores escuras e sem folhas, os corvos negros que grasnavam incessantemente sem harmonia. O arco longo em suas mãos, o cão de sala à sua direita e o perdigueiro à esquerda, quietos e cabisbaixos; vento batia gelado contra seu rosto e de sua boca saía o ar condensado. Sua esposa desejara-lhe uma boa caça, seus filhos — tão mirrados, tão pequenos; os dois que sobreviveram ao último inverno tinham cara de que não passariam daquele — imploraram-lhe por carne. As colheitas haviam sido ruins e todos passavam fome: sua própria barriga roncava; seu corpo estava fraco e sua visão já não era mais das melhores. Ao topo de seus vinte e seis anos, Rutger Jaanssens acreditava que este inverno também seria seu último, que em breve encontraria seu Criador e que veria seus outros dois falecidos filhos, Ida e Piet, e lhes pediria perdão.

De vez em quando, ainda sentia o gosto de carne na boca.

E de vez em quando Thirza ainda comentava em seu ouvido, quando os velhos não estavam próximos e as crianças dormiam: talvez tenhamos que dar cabo de uma e fazer outra… quem sabe a primavera que virá será melhor, quem sabe os verões serão melhores de agora em diante…

Rutger engoliu em seco. As crianças brincavam e gritavam — ele não sabia de onde tiravam tanta energia —, e, a céu aberto, alguns preparavam comida em fogueiras, assando o que podiam, conversando com quem ainda estivesse vivo. Olhou por cima do ombro: estendendo-se às suas costas estava o vilarejo de Aarle-Rixtel, monocromático como o resto do mundo: branco no chão, céus cinzas, árvores escuras, corvos grasnando, casas escurecidas do tempo e da fuligem das chamas, as pessoas de roupas escurecidas da sujeira e a pele pálida da fome.

Tygo e Wiebe se aproximaram com seus próprios cães de caça, arcos, lanças e adagas: juntos, os três homens e sete cachorros formavam uma matilha patética a revirar o solo congelado, as florestas escuras e a terra morta. Antes eram dez animais, mas o inverno tenebroso e a fome os matara.

De vez em quando, ainda sentia o gosto de carne na boca…

— Thirza mandou tortas para nós — disse Tygo, a boca invisível sob a farta barba loira. — Três pequenininhas. Arranjou as vísceras de um veado que Sjors matou ontem e fez esse favor para a gente.

E Rutger pensou em dizer: Então quer dizer que você passou na minha casa, encontrou com a minha mulher enquanto eu os esperava e ela preparou comida para você?, mas franziu o cenho e o pensamento sumiu no momento seguinte, escondido sob a neblina da fraqueza e da fome.

— Vamos logo que eu quero voltar em hora para ouvir a missa — disse Wiebe, seguindo na frente. Seu corpo pequeno quase desaparecia sob camadas e mais camadas finas de roupas. — A gente vai morrer mesmo, então é bom estar em dia com Nosso Senhor e Nossa Senhora.

— Isso é verdade — disse Tygo, estendendo a mão para Rutger e, quando este a segurou, o levantou. — Mas esta terra é muito sofrida. Esta vida é muito sofrida… a Roosje ainda não superou a morte do Yorick. Eu digo a ela todo dia: deixe isso para lá, mulher, os mortos não precisam do nosso choro, a gente tem que dar atenção aos vivos… mas aí o pai dela também morreu ontem, vocês souberam? Ela está em desespero, não sei mais o que fazer. Eu digo: mulher, a morte nada mais é do que a nossa passagem para o Reino dos Céus, então-

— Ele já não tinha morrido? — perguntou Rutger, puxando o gorro para baixo. Os cabelos pretos e desgrenhados caíram-lhe no rosto. — Nunca mais tinha visto ele… Jozef, não era o nome?

— É. Ele quase não saía. Nos últimos dias, ficava falando que não queria comer. Que queria que eu e ela tivéssemos força para caçar e arar o campo quando a primavera viesse. Aí morreu. Velho maluco, eu disse para a Roosje, e ela me bateu. Olha só. — E afastou a barba e o bigode, deixando amostra um corte colorido no lábio superior: vermelho, preto, amarelo, rosa, roxo, todas as cores juntas. — Dá para acreditar numa coisa dessas?

Uma risada contida veio de Wiebe e Tygo se agachou, pegou neve nas mãos enluvadas e pôs contra o ferimento.

— Mulher maluca — disse, balançando a cabeça. — A Thirza lida melhor com isso, não lida?

— Bastante melhor. Até demais — disse Rutger, apertando o passo para aproximar-se de Tygo. As árvores se tornavam mais densas, e ao longe surgia uma floresta escura. — Até a hora da missa, hm? Não temos como saber nem quando vai anoitecer. É tão rápido.

— Nisso a gente dá um jeito — disse Wiebe. — Não se preocupe. Vamos rápido para voltar rápido. Tenho cinco bocas para alimentar naquela porra de casa.

— E por que você não chamou a Katrijn? — perguntou Tygo, coçando o nariz, com um sorriso maldoso no rosto. — A gente tem as nossas desculpas: Roosje ficou maluca e Thirza tem coisa pra fazer com as outras mulheres. — Pausa. — Não tem, Rutger?

E ele pensou mais uma vez: E você sabe até da rotina da minha mulher, seu desgraçado, mas respirou fundo e só concordou com a cabeça.

— Ela não está muito bem, não — disse Wiebe, afagando a cabeça de um cão de aparência triste. — Tá com doença de peito.

— Hm, que azar… ao menos não é aquela peste esquisita. Se fosse, todo mundo já teria morrido. Pense pelo lado bom: se ela também for encontrar o nosso Criador, você pode arranjar outra mulher mais bonita e mais-

— Quer calar a boca, Tygo? — disse Rutger, o cenho franzido e os lábios pressionados juntos. E, em um sussurro, adicionou: — Ele não está bem, também.

— O quê?

— Doença de peito — repetiu. — Ele também.

Com isso, Tygo finalmente se calou. E puseram-se a observar a figura patética de Wiebe claudicando na frente, encurvado para frente, a mão mole sempre afagando um cachorro.

Eventualmente o mundo ficou quieto. O único barulho que quebrava o silêncio era o dos passos dos homens e dos cães esmagando a neve, mas não se ouvia os pássaros, nem o som do vento, nem o som dos animais, como se toda a terra tivesse morrido de uma vez por todas e cedido ao frio. Mas, quando Tygo ia puxar ar para falar, Rutger e Wiebe levantaram os olhos para a floresta e deram as costas a ela, protegendo o corpo de um súbito e potente tufão. Os cachorros latiram, rosnaram e ganiram; a bolsa com tortas de Tygo caiu no chão branco e ele gritou ao recuperá-la, abraçando a si mesmo e à comida, e Rutger disse, de olho no céu que escurecia:

— Deve chover- nevar — corrigiu-se. — Não estou gostando disso- vamos voltar para casa!

— De mãos vazias? Nós nem ao menos chegamos na floresta! — rosnou Tygo. — Vamos andando! Esta neve tardará a cair! — E pôs a mão no ombro de Wiebe, empurrando-o para frente. — Só precisamos de uma raposa, um coelho, um veado que seja…

Rutger engoliu em seco e se abraçou, os dentes trincados do frio.

E, a contrariar Tygo, não tardou muito para a neve voltar a cair: cruel, mortal e gelada, tornando o mundo escuro do meio das árvores em um branco; foi deste jeito que conseguiram alcançar uma raposa e perseguir um veado, mas os cães já mancavam e ofegavam e tremiam e reclamavam, até que eventualmente sumiram, e Wiebe tossiu sangue, e a voz de Tygo desapareceu junto dos cães. Com seu companheiro de caça nas costas, andando a esmo, sentindo os dentes e as lâminas do frio mordendo-lhe os pés, os rostos e as mãos, eles saíram da densidão das árvores apenas para encontrar um mundo inteiramente branco, onde não podiam ver um palmo à frente do nariz.

— Nos perdemos — Rutger murmurou para Wiebe, respirando forte, sentindo o frio entrar por sua garganta e congelá-la por dentro. — Meu Deus, nós nos perdemos. Tygo! — berrou, e tateou o olifante que carregava na cintura. Ergueu-o e soprou-o, produzindo um som grave e constante, mas não forte o suficiente para vencer o da nevasca. — Tygo!

Virou-se para Wiebe — notou que seu ombro direito estava vermelho com sangue — e o largou no chão, dizendo, gritando:

— Por que você quis vir caçar se estava doente do peito?! Merda, Wiebe, se levante!

O homem mirrado caiu sentado e não se mexeu — ficou cabisbaixo, encolhido em si, silencioso — e Rutger insistiu, tomou o olifante nas mãos mais uma vez, deu um passo à frente e o soprou, soprou até que seus pulmões esvaziassem, cansassem e doessem, e respirou fundo de novo e repetiu o sopro e o passo, e mais uma vez, até que pisou em falso e quase caiu de cara na neve. Coberto da cabeça aos pés, teve dificuldades para enxergar em que pisara: ao notar que não era uma pedra, precisou se agachar e afastar a neve com as mãos, e deu de cara com um crânio velho e marrom.

Prendeu o ar dentro de si e se afastou com um pulo. A mente correu por todos os lados e todas as perguntas em segundos; tropeçou para trás e percebeu que pisara em outra coisa, algo que também não era uma pedra; com um afastar das mãos, encontrou outra caveira, e um fêmur, e três ossos das costelas.

— Onde estamos, Wiebe…? — perguntou, permitindo-se sentar ao lado de seu companheiro, apoiado nas mãos atrás de si, mirando o céu escuro, de onde ainda vertia neve. — Não podemos morrer aqui. Que azar seria.

O olifante quase não se ergueu: seus dedos e mãos tremelicavam demais e seus braços não mais lhe obedeciam direito; mal conseguia encher os pulmões de ar para soprá-lo; o som veio débil e moribundo. Deixou então o chifre de lado e, tomado de uma súbita onda de calor, tirou a capa e o gorro, sentindo os cabelos escuros jogados de um lado ao outro pelo vento.

— É melhor voltarmos para a floresta — murmurou, balançando a cabeça, e mal ouviu a própria voz. Enquanto passava os dedos enluvados pela neve, sentiu que tocava em mais pedaços de cadáveres. — Quem são essas pessoas…? Esses campos aqui são tão bonitos nos meses quentes; será que eram caçadores como nós? Que morreram nessas nevascas- e nós somos os próximos?

Mas a pergunta pareceu cair em ouvidos surdos e não houve resposta: Wiebe prosseguia cabisbaixo e quieto. Rutger então sentiu o corpo esquentar de raiva; o calor tornou sua mente um pouco mais lúcida e ele chegou a levantar a mão para estapear seu amigo no rosto e gritar mais uma vez, mas, quando ia fazê-lo, Wiebe tossiu uma tosse tão baixa e discreta que quase se perdeu no infinito.

E a mão abaixou.

— Se está vivo, então me responda — insistiu Rutger, o cenho firmemente franzido. — Ou vou deixar o teu corpo aqui.

Ele tossiu mais uma vez. Desta vez, carmim manchou suas pernas, seu colo e a neve abaixo de si. Rutger se afastou, enojado.

E de novo. Desta vez, uma bola de sangue bateu, respingou e se espalhou, formando uma pequena poça.

E novamente. Desta vez, da boca e nariz de Wiebe saiu uma torrente de sangue inacabável.

Rutger se pôs de pé num pulo, embasbacado, e aguardou o fim da vida de seu companheiro e o cessar do rio vermelho, mas o corpo já morto encurvou-se ainda mais e pareceu secar, e a poça de sangue já batia nas solas de suas botas e parecia subir até seus dedos, em seguida até seus calcanhares.

O vento batia cada vez mais forte. Rutger tirou suas luvas e olhou para os próprios dedos: escurecidos, azulados, pálidos.

Olhou novamente para o lago de sangue que saía do corpo morto de Wiebe. Seus reflexos mostravam apenas cadáveres esqueléticos, e estes — e os crânios, e os olhos que saltavam do carmim — encaravam Rutger.

Ele soltou todo o ar de seus pulmões de novo e custou a puxá-lo de volta. Seu coração batia rápido e leve. A fraqueza tomou conta de seu corpo e ele caiu de lado, o rosto dois terços afundado no sangue, observando em silêncio a fonte sem fim que se tornara Wiebe.

Não se lembrou de ter fechado os olhos.

2. HOC QUOQUE FINIET