shinsekai

Aither

Ele estava preso em cristal.

O último dos monádicos — abraçando seus joelhos, nu, os olhos fechados como se dormisse, os longos cabelos em tranças, o rosto sereno — escondido neste fim de mundo. A última pessoa capaz de tirar o aithēr do ar, da terra, da água, dos seres vivos; a última pessoa capaz de manipular esta realidade e esta natureza pela pura força de vontade, a última pessoa a não depender das refinarias, o manipulador mais poderoso que já existiu. O único que poderia nos devolver este poder.

Vendo-o, concluí que minha vida toda fora uma busca por ele. Não consciente; completamente primal, como se eu precisasse descobri-lo e acordá-lo, como se alguma coisa nos meus genes e sangue ordenasse que eu fizesse isso. Como se tudo — a faculdade, os meus estudos sobre os aithēres de invocação, o meu serviço na Refinaria Abilmetech, a minha demissão para ver se alguma coisa daria certo, a busca e o resultado — tivesse sido minuciosamente colocado para que eu o encontrasse.

Para que nós o encontrássemos. Madame Huldar tirou os cristais de aithēr da bolsa de couro e os colocou na nossa frente, triunfante. Anne-Dvorè segurou a minha mão com força e não tive nem forças e nem vontade de retesá-la. Malachènos enxugou o suor da testa e sorriu; devolvi o sorriso e ri junto dele: esta risada alastrou-se para as outras duas, e logo estávamos todos rindo de alívio. Depois de tanto tempo, de tantas buscas, de tantos problemas, tantos ossos quebrados, choro e raiva, tantas discussões, tantos “eu nem sei por que decidi vir contigo”, tudo acabou em um abraço apertado.



Minha vida toda foi uma busca por ele.

Foi difícil tirá-lo daquela cratera, daquela caverna onde decidiu se meter para dormir por qualquer motivo que fosse. O cristal estava como se fundido às pedras, então a solução encontrada foi uma invocação pontual: de dentro da minha capa azul tirei um aithēr cristalino, de cor amarelada, e o quebrei entre os dedos. Dele surgiu um Solomon, feito de penas e sombras e escamas e tristeza e frustração, que se comunicou comigo em grunhidos que só eu, graças a tanto estudo, entendia. O que ele quis dizer foi o seguinte:

— Vai demorar um pouco, patrão. Já não sou tão forte como antes.

Sempre me espantava que estas criaturas aithērinas fossem ao mesmo tempo uma e várias: não existia o Solomon, e sim uma essência multiplicada e dividida infinitamente, um código posto em cada cristal invocatório, um sentimento e uma ordem que tem milhões de corpos e uma só consciência. Já vi vários Solomons morrerem, mas o próximo sempre surge e me diz, como se decepcionado, “desculpe, patrão, já não sou tão forte como antes… da próxima vez não deixarei isto acontecer”, mas sempre deixa, porque os animais e os monstros são ferozes e vorazes, e tudo bem porque ele nunca morrerá.

Solomon tirou o último dos monádicos em duas horas, derretendo a rocha com seu sopro infernal. Carregou-o para fora da cratera, escoltado por nós quatro — eu e minha espada de defesa e outras invocações, Madame Huldar e sua espada aithērina, Malachènos com suas manipulações médicas e Anne-Dvorè distribuindo remédios, poções e elixires — e nos deixou de frente ao aeróstato de Reneé. Reneé, de óculos de segurança no rosto, xingou e abraçou a todos nós.

Eu também ria e xingava de felicidade.



Ele nunca morrerá.

Ele estava nu, então não sabia que roupas usava antes de se congelar, e nem parecia ter mais de trinta e cinco anos, mas sentia que ele era muito velho. O penteado — as tranças — não eram mais comuns, os povos do sul não as usavam mais — até porque dava um trabalhão, imagino. A julgar pelo que me lembrava dos livros de História, o último dos monádicos devia ter uns duzentos e trinta anos: ele viveu antes de Drendos unificar-se a Guranamik, antes das três Grandes Guerras, antes do descobrimento do aithēr como elemento químico, antes do desenvolvimento das técnicas de refino.

Solomon tirou o cristal de dentro do aeróstato e o carregou até as ruínas da plataforma da Abilmetech em Al-Maachite; colocou-o em uma câmara adequada e partimos para acender as luzes, matar as baratas, varrer a areia e pedir comida pelo telefone. Malachènos decidiu que ia tirar um cochilo, preguiçoso como é, Anne-Dvorè ligou para seu filho e mandou-o fazer o dever de casa e se cuidar bem, Madame Huldar tomou seu tempo para polir a espada e trocar os aithēres que a tornavam elemental. Dispensei Solomon com um sorriso recatado e um agradecimento, e ele me disse:

— De nada, chefe. Me chame quando for necessário.

Sumiu em brilho e frescor.

E eu fiquei a observá-lo — ele, o objetivo da minha vida —, esperando o tempo passar, Malachè acordar, meu coração parar de bater na boca, sempre pensando: ele finalmente está aqui. Penteei os cabelos e notei que precisava cortá-los logo, tomei um banho, troquei de roupas, bati a capa para que a poeira saísse, organizei os cristais aithērinos que me sobravam de mais para menos poderoso. Mas meus olhos sempre eram puxados por aquele homem de pele negra e rosto sereno que parecia ter em si todo o conhecimento do mundo.

E aqui estou. Aguardando.



Eles estão aqui.

O exército do qual Madame Huldar e Anne-Dvorè fugiram: o do norte, do país de Drendos; um pelotão armado até os dentes com armas elementais e a total resistência à lâmina mundana da minha espada. Não se pode ferir com ferro simples quem tem aithēr líquido injetado subcutaneamente, que corre para o local do impacto e endurece-se com ele em um piscar de olhos. Somos quatro contra cinquenta soldados, três porque Malachènos concentra-se apenas nas manipulações da cura, dois porque estou exausto e sem energia para puxar a forma física de Jehoash ou Asa para a realidade, zero porque Madame Huldar e Anne-Dvorè têm os dentes trincados e os rostos sangrando, as juntas dos dedos arroxeadas e as lâminas brilhando em aithēr, em fogo e trovão. A comandante do pelotão diz:

— Sua velha traidora, expatriada, covarde! — E Madame Huldar tem o rosto branco tornado vermelho. Ela ruge e parte para cima da mulher-

As espadas batem e a força que fazem me faz pensar que meus ossos são frágeis, feitos de cristal, mas a Madame já tem quase seus cinquenta anos e a comandante parece ter uns trinta; Anne-Dvorè berra quando sua superior cai de peito aberto, a armadura e a resistência aithērinas rasgadas pela espada elemental da outra. Eu tenho os olhos arregalados, a respiração presa, o suor empapando-me o rosto: a Madame era branca da cabeça aos pés, e percebo que já começo a pensar nela no passado e não no presente; a Madame não podia sair no sol sem antes passar aithēr protetor na pele e agora está branca e vermelha, e acho que posso ver seus ossos sob o corte no esterno-

Vou vomitar-

— Ela vai morrer se eu não fizer nada! — berra Malachènos, empurrando a todos para o lado e avançando na direção daquele corpo.

Um soldado avança até ele e fecho os olhos; não quero ver meu melhor amigo morto na minha frente do mesmo jeito que a Madame foi, mas, quando os abro, ele está inteiro: tem na mão um cristal de barreira quebrado e a espada do soldado está pela metade. Seus olhos azuis também arregalados, os dentes trincados, nem Malachè parece entender o que houve.

— Me deixem salvá-la — pede ele, como se soltando tudo nos pulmões. — Só isso. O que vocês querem? O último dos monádicos?

— Não queremos isto porque ele já é nosso — diz a comandante, apontando-lhe o dedo. — Parem de resistir e vão embora. Peguem este cadáver e vão embora! Nunca mais voltem! Sumam para o sul ou para o leste e sumam da minha frente!

E a mão no meu ombro me faz acordar do pavor:

— Vamos embora, Zecherï.

E o pavor volta mil vezes mais forte e me atropelo nas palavras, unhando-o, puxando-o, empurrando-o:

— Não! Não posso deixar ele aqui! Eu passei minha vida toda procurando ele! O nosso conhecimento- só ele pode devol-

— E não vai ter mais vida se ficarmos aqui- vamos embora agora, Zecherï. Ouça os mais velhos pela primeira vez na vida.

Ele sacode Anne-Dvorè com firmeza, mas ela não responde: tem as mãos sobre a boca e repete incessantemente, naquele tom tão recatado e educado, cheio de eufemismos, “caramba, caramba, caramba”; Malachè precisa pegá-la nos braços e dizer para mim:

— Vamos, Zecherï! Por favor!

Mas não quero deixar o último dos monádicos sozinho, com estas pessoas que devem querer acordá-lo à força, metê-lo numa maca, abri-lo e entender de onde vem sua aptidão natural para a manipulação e nunca compartilhar e devolver este conhecimento às pessoas; não quero, não quero, e aí ouço sua voz na minha cabeça-

Está na hora de acordar.

e me precipito na direção da bolsa de couro de Madame Huldar, entreaberta e jogada de lado próximo ao seu corpo; há uma confusão de panos e cabelos e mãos quando luto contra os soldados que querem tirá-la de mim ou tirar minha vida e, ao levantar, vejo minha capa azul da cor do neon caída e meus cristais de invocação quebrados, destruídos, pisoteados; vejo as criaturas que falharam em se materializarem gemendo e sofrendo, vejo vermelho-

Estou perdendo a paciência.

e abro a bolsa, jogo o conteúdo no chão — caem os seis cristais que lutamos por tanto tempo para conseguir, os que o acordarão — e pisoteio-os, todos de uma vez.



Meus ossos são feitos de cristal.

Sei porque ele segura minha mão direita — minha pele clara contra a dele, escura — e ela se desfaz como se ele a puxasse, a sugasse, a absorvesse; vão a gordura, os músculos, os nervos, as artérias, as veias, os capilares e o sangue, até que só sobram os ossos e meus ossos são feitos de cristal. Transparentes, com pequenos flocos brilhantes, percebo que são aithēr em sua forma sólida e, e no momento seguinte, todo meu braço abaixo do cotovelo se foi.

Com isso, ele sorri e seus cabelos torcem-se e tecem-se para formar roupas: uma camisa branca e bordada, um colete escuro, as calças cor de creme, botas altas de viagem, uma casaca da mesma cor do céu.

— Meio antiquado, não é? — ele me pergunta, levantando os olhos amarelos. Seu sotaque é estranho e antigo. — Não é mais deste jeito que as pessoas se vestem…

E elas mudam: tornam-se calças escuras como as minhas, uma camiseta de gola alta como a minha, uma capa azul forte como a minha e até tem um arco no cabelo como o meu.

Ele toca minha perna esquerda. Ela se vai e caio sentado.

Ao longe, ouço Malachè gritando:

— Zecherï! Saia daí!

Por cima do ombro, vejo que Madame Huldar está de pé e que os soldados estão todos apavorados, apertados uns contra os outros nas paredes; a comandante reza em silêncio e vertem lágrimas de seus olhos.

Não sinto dor. Minha vida toda foi uma busca por ele.

— Volte para mim. Sejamos unos de novo.

Ele toca meu peito e pressiona.

Caio no chão — sou puxado pelos cabelos, pelas roupas e pelo braço que me sobra — e me seguram Madame Huldar, Anne-Dvorè e Malachè, como se eu fosse a última coisa preciosa no mundo, o sangramento da amputação para com um brilho e com o quebrar de um cristal-

O último dos monádicos está puto-

— Ele vai morrer em dois anos, vocês sabem — diz ele, batendo a mão na testa, e meu coração para por um momento. Parece que as respirações deles param também- — Eu criei ele. Agora passem para cá.

— Do que você está falando…? — diz Malachè, segurando-me pelos ombros com tanta firmeza que dói. Ele me abraça como um irmão; mais que um, como se eu fosse parte dele e ele não pudesse me deixar ir-

— Eu o criei — repete o outro, e mais pausadamente: — Eu-o-criei. Ele é parte de mim. A parte de mim que não dormiu. Vou ter que desenhar? — Dá um passo para frente. Todos se empurram para trás, fugindo dele. — Ah, aliás, meu nome é Noakhe.

— Impossível — murmura Malachè, e sussurra algo com Madame Huldar e Anne-Dvorè. Sou jogado sobre seu ombro e vem cabelo claro na minha cara e todo meu corpo dói-

— Malachènos, não minta — diz o último dos monádicos, as mãos na cintura. — E nem tente fugir. Você realmente o conhece desde que era pequeno? “Zecherï”, como vocês o chamam, até acredita que sim, mas você… você sabe que não é verdade.

Meu corpo e coração doem.

— “Zecherï” cria memórias falsas e uma personalidade nova de quinze em quinze anos. Deixem que eu me explique melhor. Peço só um minuto. Quando percebi que seria perseguido e que morreria, porque na época eu já era o último a tirar aithēr e mônadas da natureza, decidi separar parte da minha consciência e colocá-la nestes ossos imortais. Assim eu viveria sem viver, aprenderia o mundo sem estar lá e me prepararia para quando o momento fosse apropriado. Entendem? Quem é “Zecherï” sou eu. Esta consciência só existe nos ossos. Esta personalidade vai morrer em dois anos e tornar-se-á uma nova.

Sinto vontade de chorar.

— Em resumo, eu sou Zecherï. E por estes membros que peguei, me lembro destas memórias falsas que criei para ele; me lembro da nossa infância, Malachè…

Por favor, não me troquem…

— Me lembro de quando Anne-Dvorè me pediu em casamento. Mas neguei, claro, não tenho idade para ser padrasto de um menino de oito anos! Sou ainda mais novo que você, você sabe. Me lembro quando vi Madame Huldar e pensei- nossa, como esta velha se mantém em forma? Eu sou um palito!

A risada dele é igual à minha.

— Eu tenho a impressão de que mesmo se absorver todo este conhecimento, ainda não vou descobrir seu nome verdadeiro, Madame Huldar!

Minhas lágrimas fluem.

— Então- se ele voltar para você- ele viverá em você? — pergunta Anne-Dvorè, dando um passo à frente. — Não o perderemos?

Pelo amor dos deuses, não me deixem ir.

— Não, não, não — diz Malachè, e vamos para trás, para trás, quase na saída das ruínas, e não paro de chorar. — Não vão! Não vão!



Ele me abraça como um homem abraça seu amante, sua outra metade, a outra parte de si, a capa azul nos cobrindo quase por inteiros. Segura meu rosto inclinado e beija minha face.

Abro os olhos em susto. Malachè desacordado, Madame Huldar com a mão sobre os olhos e o rosto virado, cabisbaixo, Anne-Dvoré dividindo lágrimas comigo.

Sinto a pele repuxada, os músculos cedendo, as veias e artérias rasgando, o sangue evaporando, os cabelos destruídos, até que só sobram meus ossos feitos de cristal.

E nada mais depois disto.


… Abro os olhos em um susto.

Eu estava preso em cristal…