shinsekai

A Efemeridade de Todas as Coisas

Este mundo um dia vai acabar, isso é verdade. Ele nasceu há quatro bilhões e meio de anos como uma esfera estéril no meio do nada, entre matéria escura e poeira, e criou vida como que espontânea com o calor da estrela mais próxima e uma força de vontade muito grande. Daqui a alguns bilhões de anos ele deverá acabar, engolido pelo calor da estrela que lhe deu vida. Será daqui a tanto tempo que não estaremos mais aqui, espero; ao menos eu não estarei mais aqui, porque não quero ver o fim do mundo. Mas quem quer que esteja, seja humano, seja animal, seja planta, seja mineral, seja etéreo, verá o apocalipse com os próprios olhos e espero que daqui a seis bilhões de anos já estejamos bem longe daqui, a desbravar outras estrelas enquanto deixamos nosso planeta para trás. Isso me leva ao segundo argumento:

Este mundo é eterno. Mesmo quando ele for engolido, certamente sua matéria será utilizada para fazer outra coisa, sua energia não terminará porque ela é imortal e daqui a bilhões de anos talvez haja uma criança em algum planeta distante feita de poeira deste mundo…



Meu nome é Inês. Tenho dezessete anos e sou uma NEET. Isso significa not in employment, education or training, ou seja: não estudo formalmente, não trabalho e não estou sendo treinada para nada de útil no meu futuro. Antes que sintam pena ou raiva de mim, quero que pensem pelo meu lado da história. Fui expulsa do colégio por abrir o crânio de um coleguinha na base da porrada. Meu pai diz que eu não tenho vontade nenhuma de criar nada e que só penso em destruição. Não é verdade. E antes que os salvadores da adolescência venham encher o saco, estou estudando para o vestibular e com sorte conseguirei meu diploma do ensino médio esse ano.

Meu sonho é ser lutadora de UFC. Faço muay thai três vezes por semana numa academia aqui perto de casa. Um dia eu chego lá. Também posso entrar para as Forças Armadas. É uma possibilidade; minha madrinha trabalha na Marinha de Guerra. Ela é Capitã de Corveta, bióloga, e ganha mais que minha família toda junta. Mora num apartamento legal em Botafogo e de vez em quando me convida para ir para lá, e aí eu fico ouvindo ela falar do serviço. Mente vazia é oficina do Diabo, meu pai diz, então seria bom eu começar a trabalhar com qualquer coisa para preencher essa mente vazia. Acho que não posso lutar muay thai sempre.

Também gosto de Astronomia e de ficar olhando as estrelas da cobertura do meu prédio, mas sei que é muito difícil passar para isso no vestibular e eu não sou muito boa de matemática e física. Mas olhar para o infinito me dá um conforto estranho de que sim, esta vida é passageira, então eu arranjar ou não um emprego não vai importar nada para a Grande Ordem das Coisas. Eu sou só uma NEET moradora da Zona Sul do Rio de Janeiro, uma em sete bilhões, e comigo ou sem mim este mundo continuará andando porque nada mais importa. Nem os grandes magnatas do petróleo podem mudar que este mundo é eterno. Nem eu, nem eles, nem você, nem ninguém.



Hoje eu estou com uma sensação muito esquisita. O dia está claro e está ventando de leve, uma brisa vem do mar. Não há nenhuma nuvem no céu. Alguma coisa vai acontecer. Hoje tenho treino, mas quero ficar em casa, tomando sorvete, olhando para o teto e para o ventilador, pensando na morte da bezerra.

O telefone toca e eu me arrasto para atender. A voz da minha madrinha surge:

— Inês, tenho uma coisa muito legal para te contar.

— O que houve? A senhora está aqui no Rio? Achei que estivesse embarcada, demorou tanto para dar notícias.

— Estou, e demorei porque tive problemas — diz ela, muito séria. — Tivemos que chamar o Minas Gerais e o São Paulo, por isso demorou. — E nem consigo imaginar o que tenha necessitado da presença de um porta-aviões de última geração e de outro menor, mais humilde. — Mas vou desembarcar depois de amanhã. Descobrimos algo incrível e queria muito que você viesse ver. Quem sabe assim você não se inspira para entrar na faculdade?

— Mas, dinda — digo, tensa. — É segredo militar isso que vocês descobriram, não é?

— A mídia já está rondando aqui feito urubus — diz ela, e imagino vários helicópteros dando voltas sobre o navio onde ela está. — Não teremos nem muito tempo para manter segredo, então por que não vem vê-lo?

— Quando?

— Semana que vem, no sábado. Me espere na frente do edifício Barão de Ladário às duas da tarde, que tal?

— Tá.

E ela desliga sem se despedir.



A semana passa arrastada, num marasmo só. Meu pai me chama de inútil o tempo todo. Ontem ele jogou um rolo de papel higiênico na minha cabeça, mas eu não ligo porque sei que se eu me rebelar, abrirei o crânio dele também. E ele também sabe disso, por isso só ocasionalmente ele me enche o saco desse jeito. Antigamente jogava coisas piores como quadros ou cadernos de capa dura, mas hoje são só travesseiros e rolos de papel higiênico. Queria muito que a minha madrinha me adotasse, porque viver nessa casa é só sofrimento. Desde que minha mãe foi embora, as coisas são assim. Meu pai é um frustrado, eu sou uma frustrada, somos todos frustrados; ele trabalha duro para botar comida na mesa e eu só como essa comida e não devolvo nada; ele usa os fins de semana para rezar a Deus e pedir que me leve logo e eu uso os fins de semana para aprender a me defender de qualquer deus que queira me levar antes da hora. E nessa harmonia vamos vivendo. Não é tão ruim assim, eu tenho amigos.

Não pense que sou uma perdedora só por ser uma NEET.

O sábado chega e eu saio de casa bem cedo. Quero almoçar fora e deixar meu pai em paz para rezar, quero comprar um presente para a minha madrinha e estar lá pontualmente às duas da tarde. Compro uma bolsa num camelô, mas minha madrinha é uma desastrada e só consegue sair do serviço para me encontrar às duas e meia. Chega esbaforida, como se uma comandante como ela tivesse corrido ou nadado do porta-aviões até aqui.

E aliás, quando dou uma volta no quarteirão vejo os porta-aviões e eles parecem mesmo um monstro gigantesco na Baía de Guanabara. Há realmente helicópteros os sobrevoando a todo o momento, e a todo momento saem pequenas embarcações do Primeiro Distrito Naval em direção ao Minas Gerais e ao São Paulo. Por que todo navio grandioso recebe sempre os nomes desses dois estados?, penso, mas não pergunto à madrinha. O céu está nublado e o vento está mais forte. Ela para na minha frente, toda vestida de branco, linda, e põe as mãos nos joelhos, levantando a mão espalmada para mim. Veio correndo do Distrito Naval logo ali do lado só para me encontrar.

— Só um minuto, eu não tenho mais vinte anos — ela diz, ofegante.

— O que você quer me mostrar? — pergunto. — Estou ficando com medo. Parece que tem uma bomba atômica ou algo assim lá dentro.

— É algo bem próximo a isso, tão maravilhoso quanto — diz, sorrindo, tomando minha mão. — Vamos lá.



Eu nunca andei de helicóptero antes, então morro de medo o trajeto todo. Odeio altura. Se eu me espatifar dessa altura na água só sobrará um corpo inteiro por fora e quebrado por dentro, que será comido por todos os peixes mutantes que vivem nessa baía. Não gosto dessa ideia. Mas agora vejo daqui de cima a coisa que minha madrinha queria me mostrar e minha garganta fecha de pavor. Além do nosso helicóptero há outros da mídia sobrevoando, e imagino o que aconteceria caso batêssemos e explodíssemos antes mesmo de eu poder chegar e tocar naquela coisa.

Mas conseguimos aterrissar com todo o cuidado no Minas Gerais e minha madrinha me pega no colo e põe no chão em segurança. Não sou uma garota muito alta, admito, e também estou abaixo do peso. O vento aqui é tanto que sinto meu corpo sendo jogado para lá e para cá e parece que a qualquer momento uma bufada mais forte vai me fazer voar e cair na água. Há cabos e marinheiros e sargentos e suboficiais correndo para lá e para cá, o ocasional tenente seguindo seu comandante e dando ordens para os subordinados. Há, também, vários jornalistas entrevistando os comandantes e até mesmo um almirante que está lá, gravando uma reportagem que vai passar hoje no jornal da noite.

— Olha que coisa incrível — diz minha madrinha, estendendo a mão para o monstro.

Ele é gigante e está morto. Tenho certeza que está morto. O Minas Gerais tem 290 metros de largura e ele toma quase aquilo tudo; é incrível como um só navio conseguiu carregar tanto peso e não afundar junto.

— O encontramos no Polo Sul. Tivemos uma briga enorme com os argentinos pelo direito de trazê-lo até aqui. Ele já estava apodrecendo, é, e agora vai apodrecer ainda mais rápido. Por isso vamos tirar algumas partes dele aqui e jogá-lo de volta no mar gelado.

Ele é branco salpicado de vermelho — ferimentos pós-mortem causados por peixes e baleias e tubarões, posso ver — e não tem pelo algum. A pele parece borrachuda, macilenta. Ele não está inteiro. A outra metade está no São Paulo.

— Desconfio que ele seja um ningen.

— Não sabia que você gostava de lendas urbanas — digo.

— Eu tenho muito tempo livre nos finais de semana — diz minha madrinha, sorrindo.

Um ningen é uma criatura aquática que supostamente apareceu nos mares do Japão por volta dos anos 90 e 2000. É claro que a maioria das fotos são montagem, mas mostram uma descrição comum dos bichos: são gigantes, brancos e borrachudos, humanoides adaptados para a vida aquática.

— Mas só achamos um, onde será que estão os outros?

Sua cabeça do tamanho de uma casa está caída na nossa frente e ele parece que tem um focinho como o de uma foca ou um dinossauro, de onde saem dentes pontudos.

— Ah, ele certamente era um carnívoro. Aliás, ele não tem órgão reprodutor externo nenhum. Isso é muito estranho, não acha? Já colhemos seu sangue para analisá-lo.

Seus olhos minúsculos — em comparação, porque são maiores que eu — estão fundos em sua cabeça e ele é esquelético. Posso ver os ossos de suas vértebras e caixa torácica cutucando a pele por dentro e querendo sair, e alguns deles realmente saem de seu pulso dobrado e retorcido que não tem mais uma mão.

— Ele a perdeu na viagem, mas também falta um pé e esse não foi culpa nossa. A cauda estava carcomida por peixes. Deve ter morrido faz não muito tempo e então a fermentação em seus intestinos e a decomposição da sua carne gerou gás que o levantou. Será que ele é uma criatura abissal?

E nesse momento sinto uma enorme vontade de chorar. Nunca antes me senti assim, mas essa criatura morta na minha frente me deixa muito triste. Onde estão seus pais, seus amigos, seus companheiros? Algo assim não pode ter vivido sozinho por tanto tempo e oh não, e se for o último sobrevivente de sua espécie? É maravilhoso e trágico ao mesmo tempo e eu quero chorar de emoção. É a primeira vez que algo arranca de mim essa reação emocional. Não acredito que estou mesmo na frente de um bicho tão ancião e misterioso e que ele está morto.

— Posso tocar nele? — pergunto.

— Não é aconselhável mesmo — diz minha madrinha, levando a mão ao queixo. — Você pode afetar alguma coisa nele ou ele pode te passar alguma doenç-

— Comandante Mariana, por favor — diz um repórter, que distrai minha madrinha no momento certo.

E o toco. Meto a mão em sua cara e aperto a carne, a pele borrachuda, enfio as unhas e o marco. Não sei se alguém viu e não quero saber. Minha mão ficou manchada por uma gordura esquisita que eu limpo nas calças.

— Que coisa, não suporto esses jornalistas — diz minha madrinha, virando-se pra mim. Ela nem desconfia de nada. — Quando você quiser ir é só me falar, certo? Já vamos expulsar esses civis daqui e começarmos a autópsia.

— Eu quero assistir — digo, muito firme, e minha madrinha puxa o ar para me repreender, mas insisto: — Não tenho nada pra fazer lá em casa. Quero ver como vocês fazem. Quero aprender com vocês. Me deixa ficar!



É preciso encher muito o saco para que ela me deixe, mas ela deixa. O ningen é cortado e transferido em parte para um armazém selado e secreto no Arsenal de Marinha, onde divide espaço com submarinos em construção, navios em reparo e todo o tipo de coisa. Sua cabeça é levada, assim como seu tronco, e um braço e uma perna ficam no Minas Gerais: é lá que examinarão essas partes. O que sobrou — pouca coisa — é posto no São Paulo para ser levado de volta ao Polo Sul. E fico no armazém refrigerado, toda vestida com aquela roupa para biohazard; a máscara de gás que cobre meu rosto todo, o macacão e as luvas desengonçadas. Pareço estar num frigorífico. Num abatedouro.

Minha madrinha vai fazer a primeira incisão na cabeça do ningen. Não tenho nem como descrever o quão enorme ela é. Parece que é do tamanho de vinte Inêses, uma em cima da outra. Assisto ao seu dissecar lento e vão surgindo os olhos — do tamanho de apenas duas Inêses — o cérebro, os dentes — esses do tamanho de até quatro ou cinco Inêses — o cerebelo, o começo da espinha dorsal, suas artérias e veias que parecem túneis e seus capilares do tamanho de meus braços. A língua tem a largura de uma Inês e o comprimento de umas três delas. Os ossos são brancos, tão brancos que reluzem às luzes artificiais.

— Não sei quantos anos isso tem, mas é muito velho — diz um sargento.

A impressão que eu tenho é que ele é tão ou mais velho que esse mundo. Ele não foi eterno. Será que esse planeta também será?

A dissecação da cabeça e tronco demora dias e acompanho cada sessão, todas elas. Em seu tronco há órgãos de utilidades inimagináveis, de formatos estranhos e cores incomuns; seus pulmões são roxos e seu fígado — ou o que minha madrinha imagina que é o fígado — é verde. Seus intestinos são muito curtos, seu pâncreas é inexistente, há coisas esquisitas na parte inferior e seu coração é do tamanho de uma baleia azul. É preto. Quero tocá-lo.

E, quando penso que quero tocá-lo e mordê-lo, ele bate, esguichando sangue vermelho brilhante até em mim. Há correria e gritaria, e depois que todos se acalmam há risos e mais risos.

— Deve ter sido um reflexo involuntário — diz alguém.

Quero morder esse coração que bateu para mim.



Ontem houve o reflexo involuntário, hoje a carcaça está vazia sem motivo algum. Ossificou-se da noite para o dia. Onde está? Onde está o coração? Por que ele quis morrer para sempre para nós aqui? Minha madrinha vê que estou perturbada e põe a mão no meu ombro.

— Vamos dar uma volta. Não ligue para isso, não sabíamos mesmo com o que estávamos lidando — diz, enquanto me conduz para fora do armazém e pela Ilha das Cobras. — Mas tudo bem, nós conseguimos guardar muita coisa dele. Ele será eterno nas nossas pesquisas.

— E o braço e a perna que ficaram no outro navio?

— Vou ligar para lá e perguntar as condições — diz, levando a mão ao queixo. — Realmente, isso é muito estranho.

Ouvimos gritos de pavor e correria e nos viramos, e nós duas imitamos aqueles que gritavam. Sobre o Arsenal — não, sobre a Baía — se ergue uma silhueta, uma sombra transparente de milhões de Inêses de altura. O formato é o mesmo do ningen, mas ele parece mais gordo e mais saudável e seus minúsculos olhos brilham como faróis no escuro que agora é seu corpo. Ele está parado. Não mexe nem um músculo.

— Que porra é essa! — berra minha madrinha, e me deixa sozinha. Ela saiu correndo para o Arsenal.

E minha vontade é de abrir os braços e gritar a ele:

— Bem-vindo de volta ao mundo!

Mas não o faço porque seria ridículo.



Já se passaram duas semanas e nada da silhueta imóvel do ningen sair do lugar. Ocasionalmente ela brilha como se tivesse pequenas faíscas dentro, mas são tão pequenas num corpo tão grande que mal dá para notá-las. Os noticiários revelaram que a água não ousa o tocar: como se fossem dos mesmos polos magnéticos, se afastam. Nessas duas semanas tudo aconteceu aqui no Rio de Janeiro: veio a ONU, o presidente dos Estados Unidos, um monte de forças armadas de tudo quanto é lugar, um monte de especialistas, um monte de médiuns e religiosos.

O governo fechou a área do Porto e da Baía por enquanto, então nenhum navio mercante pode entrar ou sair, ninguém pode atravessar a ponte ou a baía para ir trabalhar, nenhum avião pode decolar e aterrissar. O Galeão está uma bagunça. Agora lá só ficam militares e civis das forças armadas e repórteres e loucos que correm para lá e para cá tentando descobrir que porra é essa!.

Meu pai amaldiçoa:

— Isso é coisa do fim do mundo!

E se for eu serei a pessoa mais feliz do mundo, mas não acredito que alguém tão bom como o ningen possa nos fazer mal. Eu sinto na palma da minha mão que o tocou que ele é beneficente e não quer nosso mal, pelo contrário: sua presença só nos lembra que ainda temos muito a aprender e que ele está aqui para olhar por nós, como um guardião esquisito que não deve ser provocado.



Hoje um caça o sobrevoou e tentou o destruir. Não entendo de aviões, só de navios, mas ele deu tiros e jogou bombas na silhueta enorme. Tudo explodia assim que o tocava, como se fosse mesmo feito de carne e ossos e pele, palpável, material; e em seguida a explosão implodia e era absorvida pelo monstro. E aí o caça tentou o atravessar e foi prontamente destruído, desfeito em pedacinhos — o avião tornando-se metal, e engrenagens, e motor; e o piloto e o copiloto tornando-se nus, e depois carne, e depois ossos, e depois órgãos, e depois nem isso — e assimilado pela silhueta. Todos os disparos que os navios de guerra fazem são inúteis. Um submarino tentou o circundar por baixo d'água, também, mas deve ter esbarrado em seus pés ou tornozelos e sumiu. Para onde será que estão indo?

Que coisa maravilhosa seria ir. Eu também quero ir. Ouço o canto do monstro durante todo pôr e nascer do sol, como se ele quisesse nos lembrar de dormir e nos lembrar de acordar. Dele eu sinto muito amor, muito mais que meu pai me dá, quase tanto quanto minha madrinha me dá. É uma sensação muito boa de ser amada por um monstrão interdimensional abissal.



Já se passaram mais três dias e ele começou a se mover. A cidade está em caos e polvorosa. Por onde ele passa as coisas são destruídas: ele pisa e tudo onde seu pé toca some, evapora no ar. Isso envolve prédios, carros, pessoas, navios, aeronaves, museus, monumentos históricos, asfalto e terra, então ele afunda até quase o joelho e tem que se levantar de novo, e lá se vão mais prédios, carros, pessoas, navios-

E é inútil tentar detê-lo. Ele não faz por mal, eu sei, mas é inútil tentar detê-lo. Enquanto os exércitos e marinhas e aeronáuticas mundiais tentam o destruir e parar com aquela loucura, eu me divirto olhando-o da cobertura do meu prédio. Olhe só, ele acabou de destruir a estação das barcas. Está indo para o aeroporto Santos-Dumont... e em breve a Escola Naval sumirá da face da Terra. Está indo ao sul, deve querer voltar para casa. Nada mais justo. Eu quero ir com ele.



Acompanho seu avanço sempre. Ele parece ser pesadíssimo, não dá mais que três passos a cada dia. A cada momento que passa os sons de tiros e explosões ficam mais perto, e agora há pessoas daqui do meu bairro que começam a fugir. Meu pai é uma delas: foi embora ontem e me deixou sozinha em casa com nossos dois gatos. Disse que eu não tenho jeito mesmo e que preferia tentar salvar sua pele a me arrastar junto, já que percebeu que eu não tenho a mínima vontade de ir. Tudo bem. Minha madrinha ficou falando comigo no telefone esses últimos dias, implorando para eu deserdar, ir embora, fugir, mas quero ficar. E ficarei nem que ela tenha que vir aqui armada.

Se é o fim do mundo que estou assistindo, quero ficar e ver tudo de camarote.



O ningen está na frente do meu prédio. Da janela do meu quarto posso vê-lo — ver suas pernas — em sua majestade irreal. Me deu um susto quando acordei. Estou indo para a cobertura de pijama mesmo, tomando meu achocolatado de caixinha enquanto tomo o elevador. O som dos caças e dos tiros está tão, tão perto. Toda hora me assusto com os aviões voando baixo. Na cobertura, olho primeiro para cima e tenho que encurvar o corpo todo para trás para tentar ver a cabeça da criatura. O céu está nublado e já começa a chover. Ah, será que vão jogar uma bomba atômica sobre as nossas cabeças?

— Você vai me matar?

Estendo a mão a ele.

Nesse sexto de bilhão de segundo, um avião passa sobre nós e deixa algo cair. O ningen se dobra sobre mim na velocidade da luz, me encarando com seus olhos de farol e abrindo sua boca escura, e ouço a explosão. Meu corpo se desfaz: primeiro as roupas se rasgam, e então meu cabelo voa, e minha pele se solta da minha carne, meus músculos dissolvem no ar, meus ossos viram pó.

E eu, na minha pequenez infinita de ponto ínfimo flutuando em algum lugar do espaço e do tempo, ouço:

— Eu finalmente te achei. Procurei por toda parte. Estou tão feliz. Seja bem-vinda ao lar.



Enquanto minha alma, minha essência ou minha energia se metamorfoseia em um monstro dentro do monstro que me salvou, não consigo ver o que acontece do lado de fora. Então eu não sei, mas o corpo da criatura está tomando forma e matéria. Volta a se tornar físico e palpável e ganha cor e cabelos como não tinha há muito tempo. Há um enorme ferimento nas suas costas e nuca, mas os ossos, a carne e pele se regeneram por completo em dois segundos.

— Eu plantei uma semente neste mundo e aguardei — ouço dizerem. — Aguardei no fundo do oceano gelado.

Não preciso que ninguém me diga isso, porque agora minha mente desdobra e se divide e se une a muita outras dentro do infinito e recebo as memórias de todas elas; vejo uma civilização maravilhosa em Marte nascer e morrer como numa fita em fast foward, vejo a colisão planetária que deu origem a Tritão, lua de Netuno, vejo planetas habitados em sistemas de estrelas binárias e terciárias; a história do Universo da origem até agora se passa como um filme e eu o assisto em bilhões de anos, ou serão segundos?, e minha energia imortal está confortável como se no útero de uma mãe graciosa e bondosa; Gliese, Kepler, Koi; vejo estrelas anãs marrons que nunca tiveram a chance de nascer e estrelas anãs pretas que morreram no fim do universo, daqui a bilhões de anos, Nemesis e Plutão, anãs azuis e estrelas negras, estrelas de ferro e estrelas imateriais que só existem na memória, tão grandes que poderiam engolir até Sedna e tão pequenas que cabem na palma da minha mão. Em todos esses lugares há pessoas, essências, frequências, energias, que seja; e ouço cada um deles ao meu lado, às minhas costas, à minha frente, dentro de mim, no meu coração e no meu cérebro.

— Minha filha!

Abro os olhos.

— Por que eu, mãe? Pai?

Vejo tudo de duzentos metros do chão. Tenho pavor de altura.

— Eu não tenho nada de especial.

Meus irmãos não param de falar no meu ouvido.

— Esta civilização falhou.

Dou um passo à frente e o chão afunda sob meus pés. Levanto a mão e vejo algo explodindo. Há mais uma voz conosco agora. Eu alcanço até as nuvens.

— Vamos destruir este planeta e partir para o próximo.

Sinto fome. Tanta fome.

— Quero fazer mais uma coisa antes.

Mudo meu curso e volto para o norte. Meus passos vão em velocidade normal, mas agora o mundo à minha volta está rápido, muito rápido. Quero salvar só uma pessoa ainda. No Arsenal de Marinha está minha madrinha, e ela não tem nem reação quando me aproximo dela. Fica parada, os olhos arregalados, me encarando, o peito estufado e o queixo erguido.

Estendo a mão a ela e, quando a toco, ela se desfaz.



Este mundo é etéreo. Há muito mais do que uma vida deste universo para ser vivida. Catorze bilhões de anos são meramente uma batida do meu coração. Quem um dia foi Inês? Este planeta vai acabar e vai se tornar meu alimento, vai me sustentar até que eu observe o morrer e nascer deste universo mais uma vez, e mais uma vez, e chegará o momento que ele não sobrará em nada além de nas minhas memórias. A cidade está em ruínas, o mar está carmim.

Eu vou comer este mundo.

Cada passo meu destrói mais e mais a história de uma nação, de um povo, de uma espécie, de um mundo; tomo-os todos para mim e os abraço como uma mãe gentil e cuidadosa. Imagino se nós não teríamos esse fim caso minha madrinha — e quem foi ela um dia? — não tivesse recuperado este meu corpo. Me dá uma ínfima tristeza destruir tudo que vocês criaram, mas é necessário; só é possível construir algo novo depois de se destruir o velho. Não quero sofrimento para ninguém mais e peço que aceitem a eternidade no meu estômago. A luta e resistência inútil se passam em dois piscar de olhos e em um inspirar e exalar de meus pulmões, já acabou. Me sento sobre o monte Everest e assisto ao fim deste sistema solar de camarote. O Sol cresce, se expande, se aproxima e seu calor é agradável e morno.

Este universo é passageiro. Só nós não somos.

Ah, meus amados irmãos, minha amada mãe, meu amado pai!